Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Sinos para José

No dia 5 de fevereiro de 2011, os sinos da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha soaram tristes.

Por 40 anos, o carrilhão da Sé fora acionado por José Nunes de Oliveira, Zé de Zumba. Naquele dia não. A mascar seu dulcíssimo e interminável chiclete, Zé fez tocar os sinos em festas, em despedidas, para chamar os fiéis e por quaisquer outros motivos que valessem anúncio ou saudação.

Zé era uma pessoa humilde, calada, um boa-praça. Fui colega de colégio de uma de suas filhas, Fabiana, que herdou do pai a simplicidade. Sucedeu ao sacristão Vicente-Boca-Torta, cujo nome foi já coberto pela poeira do tempo. O “Zumba” era do pai, o barbeiro "Mestre Zumba", que dizem era um ás da navalha.

Vejo que a Câmara Municipal, por meio de um vereador, apresentou solicitação à Casa para envio de “nota de pesar” à família. Justo. A primeira-dama manifestou condolências através de um blog. Também justo. Até o troféu de 3º lugar do 30º Campeonato de futebol da Liga de Esporte Amador do Crato ganhou o nome do antigo sacristão.

A curiosidade me faz querer saber quem sucede a José na Catedral. Ninguém. Isso mesmo. Zé de Zumba não foi substituído na Sacristia da Sé. Achei então que havia encontrado a verdadeira (e justa) homenagem ao homem. Como nos times de futebol que resolvem extinguir do uniforme o número da camisa do craque que seria insubstituível...

Mas, não. A verdade é que a igreja mudou o rito e modernizou a celebração. Não há mais sacristão, mas sim uma “junta” que auxilia o vigário nos ofícios. Que assim seja. Mas, quem ouviu os sinos da matriz naquele 5 de fevereiro com atenção, terá escutado um ressoar abafado, como se os badalos estivessem cobertos pelo manto da Virgem da Penha.

Ah, e naquele mesmo dia, o Céu se animou com o mais sensacional repicar de sinos de que se tem notícia. Salve, Zé!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Vida longa ao Conde

José Iranildo Nepomuceno, o Conde, não me conhece. Estudou Comunicação Social e é cratense como eu. São apenas coincidências.

Nos distantes anos 1960, Conde foi padrinho de ‘formatura’ de uma moça que concluía a oitava série no Colégio Estadual Wilson Gonçalves. Na verdade, meu pai seria o padrinho, mas compromissos de trabalho o impediram de comparecer. Iranildo quebrou o galho.

Os anos se passaram e os alunos do Estadual tresmalharam-se.

Faz alguns meses, Luis Santos, a quem conhecemos em família carinhosamente como “Luis de Dona Natinha”, me adicionou no então recém criado grupo “Só Crato”. Trata-se de uma comunidade de filhos e filhas do Crato abrigada no Facebook. Muita gente entrou, muita recordação veio a lume, muitas fotos antigas e, confesso, até alguma pontinha de bairrismo.

 Na casa de minha avó, resolvo mostrar a uma tia a novidade advinda da internet. Afinal, muitas das histórias contidas no grupo “Só Crato” são do tempo em que ela comia filhós e chupava rolete de cana-de-açúcar na Praça da Sé. Não demorou e a tia começou a identificar um aqui, outra ali. “Estudei com esta!! Olha fulano, morava perto lá de casa”, relembra saudosa.

Até que a tela se encheu com uma foto do Conde. “Meu amigo Conde. Quanta Saudade! Fulana me disse que ele morreu...” Êpa, atalhei. Se ele morreu, quem é que posta essas coisas na Web quase todo santo dia? Morreu não!!!??? “Claro que não! Veja aqui se não é ele...”

Os olhos da tia encheram-se de lágrimas. Feliz, repedia: "meu amigo Conde está vivo... e gordo!"

A internet, através do “Só Crato”, fez renascer muitas boas reminiscências de muita gente boa. E fez renascer Iranildo Conde (que nunca morreu) para Goretti Mendes, sua afilhada de formatura. Vida longa ao Conde!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Coringa no Céu

O Sertão perdeu hoje uma das figuras mais sensacionais que conheci. Com certeza foi recebido no Céu por São Francisco, com quem rivalizava na humildade. O firmamento ganha mais uma estrela. E o céu mais um anjo.


Padre Coringa, vigário de Farias Brito (município vizinho do Crato), foi um sobrevivente. Resistiu às secas, à extrema pobreza, às doenças de infância e, sobretudo, ao preconceito. Seu humor desconcertante provocava situações que merecem relevo. Num desses casos, estava o vigário numa beira de estrada, à espera de transporte para o seu município. Caminhoneiro parou e disse: “sobe ai, neguim". O padre agradeceu e se pôs sobre a carrada de lenha, debaixo de sol escaldante. Ao apear em frente à igreja, o motorista percebeu que se tratava do vigário do lugar e quis desculpar-se. Não precisava. Ele, Coringa, é que fez questão de agradecer a 'gentileza da carona'.

Noutra situação, o padre lavava o seu carro defronte à casa paroquial. Sujeito o abordou de forma indiferente: "É aqui a casa do Padre?" "Sim, senhor", respondeu Coringa. "Neguim, sabe dizer se ele tá em casa?". "O senhor pergunte lá dentro, por favor". Não seria tarefa fácil descrever a cara de surpresa do sujeito branco ao saber que o 'neguim' era o padre.


Imagino a mão preta entregando a hóstia branquinha...e alguns ‘fiéis’ tendo de engolir junto o preconceito.

Nunca me esquecerei dos seus exemplos de humildade. Que a sua vida sirva de mote para que cada um nós procure abolir do coração essa coisa terrível chamada preconceito.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Meu pequeno caubói

 “Esse cabra do queixo furado é macho que só a gota!” Essa foi a descrição que meu pai fez para o menino por ocasião da abertura do faroeste “O Último Por do Sol” (1961). O ‘cabra macho de queixo furado’ não era ninguém menos do que o ator Kirk Douglas. Meu pai sempre foi fã do western. Tudo começou quando os seus irmãos mais velhos saíram do sertão do Assaré para estudar no Crato. Vivia-se, então, o auge do Segundo Ciclo do Algodão. Meu avô era próspero comerciante no lugarejo que praticamente pertencia à família, distante quatro léguas da terra de Patativa.


Os irmãos mais velhos voltavam da cidade com as novidades – meio estranho para quem era interno no Seminário São José, mas deixa pra lá – do cinema. Contavam as histórias narradas nas telas, falavam dos atores, descreviam a aridez do Oeste norte-americano e partiam para brincadeiras de mocinho e bandido. Os menores, que haviam ficado na roça, se empolgavam e iam junto na deliciosa brincadeira. Um deles quase perdeu uma vista com ‘tiro’ certeiro de baladeira.

Estamos agora no mês setembro de 2011. Mais precisamente no sábado, dia 18. Meu filho caçula se estranha com um irmão por causa de jogo no vídeo-game. Mando parar a ‘profia’. Trago o menino – o mais afobado - pra perto de mim e digo: “Fique ai, vamos ver esse filme que é bom”.   Era “A Fúria dos Sete Homens” (1972), com Lee Van Cleef. Assistimos ao filme inteirinho.

Assim como meu pai herdou dos irmãos, herdei dele o gosto por filmes de faroeste. Mas, sempre me ressenti por que ninguém de casa me acompanhava nessa predileção. Acabava tendo de abrir mão e mudando de canal. Ou, então, assistindo sozinho. Isaac passou o resto sábado e parte do domingo com uma espingarda de brinquedo a caçar bandidos imaginários por toda a casa da Sapiranga.

“Pai, o que é caubói?’
“É mais ou menos como vaqueiro”.
“Pá, Pá, Pá. Eu sou caubói!”

Esse pequeno vaqueiro completa hoje 8 anos. E, sem saber, sintetizou uma vida inteira ao repassar comigo a cena que vivi com meu pai no início desse texto. Amo você caubói!

sábado, 17 de setembro de 2011

Pé no chão

Era fim de noite na redação do jornal. Fechamento. Para quem não conhece a rotina de uma redação, trata-se da hora-inferno. Tudo tem de ser finalizado com pressa e perfeição, duas coisas que tendem a não dar certo. Pior: sempre aparecem imprevistos para acabar de esculhambar o que já beira o caos. Lógico que há edições previsíveis, modorrentas, até. Mas, o comum é a adrenalina.

O sertão, quem acompanha o blog sabe, sempre trago comigo e em mim. Não importa a ocasião nem o lugar.

A noite de 12 de dezembro de 2002 foi um desses fechamentos de edição, digamos, complicado. Quando tudo parecia se encaminhar pra um final a bom termo, eis que o jogo vai para a prorrogação e com um só jogador: eu.

Explico: edição nos seus ‘finalmente’ me chega o editor do jornal com papel contendo um enorme X de caneta sobre o texto impresso. Lacônico: troque isso ai. Era a cabeça da coluna editorial do jornal, que não é assinada e, portanto, tem importância toda especial, pois a empresa assume as informações que ali estão publicadas. Além da abertura da coluna as duas notas seguintes também caíam, já que eram coordenadas com a nota principal 

Lula acabara de ser eleito presidente da República pela primeira vez. O dia seguinte, 13 de dezembro, seria aniversário de 90 de nascimento de Luiz Gonzaga.

Saiu o texto que se segue:









































O eterno Gonzaga


Hoje é dia de pegar a estrada para Exu. Dia de festejar. Seu Luiz faria 90 anos. O caboclo vai encostar os ferros de tardezinha, depois de chiqueirar os bezerros, selar seu melhor animal e partir para a cidade. Vai ouvir Dominginhos entoar as canções imortalizadas pelo velho Gonzaga.

Talvez não saiba, roceiro humilde que é, que aqueles versos, aquelas melodias, aqueles acordes também imortalizam a alma sertaneja (por que sertão é dentro da gente, já dizia Guimarães Rosa).

Vai caboclo. Vai que a noite já vem. Vai homenagear aquele a quem todos chamam de rei. Que se tornou Luiz por inspiração da santa do dia; que cantou o sertão por que viveu o sertão, brotou no sertão; e que, mesmo sendo rei, nunca deixou de fazer reverência a Januário, seu pai.

Festa
E o caboclo vai. Não tendo montaria vai à pé: ...‘‘Mas o pobre vê nas estradas, o orvaio beijando a flô/ vê de perto o galo campina, que quando canta muda de cor/ vai moiando os pés nos riacho, que água fresca nosso Senhor/ vai oiando coisa a grané/ coisa que pra mode vê, o cristão tem que andar a pé’’.

Inspiração
Que a lira de seu Luiz sirva de inspiração para outro pernambucano Luiz. O futuro presidente tem pela frente uma légua tão tirana quanto a enfrentada por Gonzaga. Vencer a fome, a precisão, a dependência da chuva... Botar o sertão num mapa que não seja o da miséria. De onde estiver, seu Luiz estará contente ao ver seu povo feliz.”


Essa história estava na gaveta do esquecimento até que um dia, através de uma rede social, a jornalista Samira de Castro me pediu para escrever alguma coisa sobre seu Luiz. Sem inspiração no dia – que não era mais de fechamentos – fui atrás da coluna redigida há quase 10 anos. E me lembrei de como é importante o cabôco ter os pés no chão. Que é pra mode ver as coisas como elas realmente são.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O indez

Não sem espanto, leio na página eletrônica da Agência Brasil que o “Ministério da Educação (MEC) vai distribuir tablets – computadores pessoais portáteis do tipo prancheta, da espessura de um livro – a escolas públicas a partir do próximo ano.”


A informação foi dada pelo próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, durante palestra a editores de livros escolares, na 15ª Bienal do Livro. O objetivo, segundo o ministro, é “universalizar o acesso dos alunos à tecnologia”.

Diz mais a notícia: “O ministro disse que o MEC está em processo de transformação. “Precisamos, agora, dar um salto, com os tablets. (...) Em 2012, já haverá uma escala razoável na distribuição de tablets.”  


A novidade veio a lume enquanto travava-se na cidade um debate desencadeado a partir de infeliz campanha publicitária de importante escola particular onde se diz que “tablets substituem livros”. Choveram críticas. Nas mídias sociais, sobretudo, por irônico que pareça. E aquilo me martelou o juízo por dias: “tablets substituem...”


Tive a fortuna de ser filho de professora vocacionada. Mais do que isso: ela sabia o poder do estudo, da leitura. Afinal de contas, o homem deve ser “bem lido e bem corrido” ensina o saber popular, dando importância ao estudo e às viagens.


Um dia me chegou às mãos infantis, da biblioteca do Grupo Escolar Presidente Vargas, um livro. O livro. A criança maravilhou-se! Um alumbramento! Livrinho surrado, capa em desgraça, páginas amareladas pelo tempo. Folhas soltas.


Logo na dedicatória, a primeira epifania:

"À memória dos sete grandes geômetras cristãos ou agnósticos: Descartes, Pascal, Newton, Leibnitz, Euler, Lagrange, Comte, (Allah se compadeça desses infiéis), e à memória do inesquecível matemático, astrônomo e filósofo muçulmano, Buchafar Mohamed Abenmusa Al Kharismi, (Allah o tenha em sua glória!), e também a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças, eu, el-hadj xerife Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan (crente de Allah e de seu santo profeta Maomé), dedico esta desvaliosa página de lenda e fantasia." 

De Bagdá, 19 da Lua de Ramadã de 1321.

Esse livro foi não só o primeiro, mas o mais importante que já li. Ele foi o indez.

E, mais uma vez para o meu espanto e alegria, vejo que ele está, na íntegra, disponível na web: http://www.cdb.br/prof/arquivos/71137_20090316043935.pdf

Não, não é o mesmo livro. Não aquele do grupo escolar e que ia ser descartado por ser de edição anterior à reforma ortográfica de 1971. Aquele está aqui, na minha estante, em lugar privilegiado e com capa dura que mandei fazer na Tipografia Cariri, que não existe mais.

Olhando pra ele, e diante dos tablets da moda, vejo que também adquiri ao longo desses anos todos, uma camada de pátina amarelo-suja, como no poema abaixo. 

Que venham os tablets com seus saltos ministeriais. Que venham os seus sucessores e as ansiadas transformações do MEC... Eu fico por aqui com a minha “desvaliosa página de lenda e fantasia.”

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GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as minhas linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
[pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.

Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[mordente da pátina...
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
(Manuel Bandeira)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Televisão

A Copa do Mundo da Argentina (ou seria a fraude do Plata?) marcou a chegada da primeira TV colorida na minha casa. Lembro da emoção diante da tela verdinha dos campos argentinos. Era uma National (como essa ai do lado), ainda com móvel de madeira e seletor. Não tinha controle remoto. Mas era tudo que havia de bom. Até um passado recente ainda estava na casa de meus pais, embora imprestável. Herdei essa mesma mania de guardar cacarecos.

Antes dela foram todas em P&B. Grandes, algumas com pés. Teve uma que era montada dentro de um móvel. A agonia era grande toda tarde. É que a imagem, no sítio, no sopé da Chapada do Araripe, não ajudava. Meses de julho e agosto, então, era uma desgraça. O vento forte fazia o que queria com a antena e lá se ia embora a imagem.


Era viciado no seriado Tarzan. Passava à tarde na extinta Tupi. O Canal 2, dos Diários Associados. Dia desses, a desgraça da imagem fugiu. Ficou o áudio apenas. E ruim! Quase enlouqueço girando o seletor à procura de sintonia. A vista embaçou. Não vi mais nada e como faz toda criança desconsolada, comecei a chorar.
 

No início da noite ainda estava mal. Perdera o episódio, praguejava com a maldita TV. Ao chegar do trabalho meu pai foi ver se tinha conserto. Ligou o aparelho. Eu ali, do lado, ansioso. A expectativa agora já era para o dia seguinte. Ele examinou um instante só e achou o “defeito”: em vez de canal 2, estava no canal 3. Daí a falta de imagem e o áudio ruim.


E o velho aparelho de TV me deu uma lição: afobação não resolve problema.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Casa Grande

Orgulho. Não tem outra palavra para definir o que encontrei em Nova Olinda ao visitar, há cerca de 10 anos, a Fundação Casa Grande. A entidade ainda não existia quando arribei do Cariri, faz cerca de duas décadas e meia. Conheci o trabalho de Rosiane e Alemberg primeiro através dos jornais, mas de perto é muito mais bacana.

Crianças que antes estavam condenadas a reproduzir a desigualdade de que são vítimas, passaram, na Casa Grande, a protagonistas das suas histórias. A banda "Os Cabinha" tocando Pink Floyd trouxe lágrimas aos meus olhos.

Equidade. Foi esse o paradigma quebrado na Casa Grande. Enquanto o filho do brasileiro pobre, preto e analfabeto não tiver condições pelo menos comparáveis às do filho do branco classe média (de estudo, acesso a bens culturais e saúde, principalmente), a faxina que a dona Dilma pretende fazer será apenas bolha de sabão.

Casa Grande rompe essa lógica: filho de vaqueiro pode ser sociólogo, músico, escritor, jornalista... vaqueiro também.

Nova Olina abriga ainda hoje muitos dos meus familiares. A minha avó, Maria Silvestre, nasceu ali, no Sítio Grossos. Lá também viveu tia Rosa que morreu de velha e tinha olhos de pavão (pelejaram para arranjar uma doença pra ela, mas não conseguiram).

Maria e Rosa conheceram outro tempo, ainda mais distante da equidade ainda tão ansiada nos dias de hoje. Tempo de casas grandes, mas também de senzalas.

Na foto acima, estamos na porta da Casa Grande eu, Verônica e João, nosso filho mais velho. Muita recordação e, repito, orgulho.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A metáfora do dedinho

Maria Isaura Araújo tem oito anos e não conhece Isaac, que fará oito daqui a 40 dias.

Isaura é uma caririense do Crato que teve a fortuna de nascer no berço de ouro da cultura popular, filha de Cacá Araújo, a quem conheci molecando nas ruas da cidade após as aulas. Cacá cresceu. Não só naquilo que mede a régua ou a balança. Cresceu e virou grande: motivador-incentivador-promotor-agitador-realizador-fazedor da cultura popular.

Sua pequena Isaura lhe segue os passos. Linda! Talentosa.

Ontem, Cacá publicou, em rede social, trabalho de Isaura. E, para meu orgulho e angústia, marcou meu nome na imagem, para ter a certeza de que eu não deixaria de vê-la. A imagem é essa ai acima. Mimosa como a pequena “Tarsila de Araújo”.  Daí a minha pabulagem: de ter sido lembrado nessa hora em que o pai é mais orgulhoso!

A angústia será mais entendida no texto logo abaixo neste blog. Melhor, explico logo. Na sequência da imagem (e do belo texto que a acompanha no Facebook) há um comentário de Cacá: “Essa pintura foi feita com o dedinho, viu?”.

Todos os dias, por pelo menos quatro vezes, faz 15 dias, Isaac tem de furar um dedinho para verificar a taxa de açúcar do sangue: diabetes.

Para meu consolo, no exato momento em que escrevo, coração miúdo, ouço do quarto ao lado meu filho mais velho exclamar: “Isaac, por que você é assim, tão FIOTA?”

Viva Isaurinha que tem oito anos e pinta com os dedinhos. Viva João e viva Miguel, que também são brincantes nessa história. E viva Isaac, que tem sete anos, fura os dedinhos, e é fiota como o Cassimiro Coco!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Café amargo

Não sou cinéfilo. Nunca fui. Mas sei apreciar um bom filme. Nada de dar nome a atores menos conhecidos, diretores que não sejam os mais badalados ou, mais ainda, a coadjuvantes e técnicas cinematográficas. Mas sei reconhecer um bom filme. Pra isso, basta uma dose mínima de sensibilidade e algum bom gosto.

Minha curva de crescimento é inversamente proporcional à curva do cinema nacional. A cidade em que nasci e cresci perdeu as três salas de exibição quando eu era ainda um garoto. Antes de fechar, ficou apenas pornografia, nacional ou ianque. A exceção eram os filmes de Renato Aragão e companhia. Outra, mas ai já foi um golpe de sorte, foi o filme “O Beijo da Mulher Aranha”, que assisti no Cassino Sul Americano, no Crato.

Quando arribei de casa em fins de 1986 a coisa não havia mudado. Contudo, Brasília tem no cinema uma forte opção de lazer. Foi lá que vi um dos filmes mais incríveis da minha vida de poucos filmes incríveis (genial mesmo é a vida real, sem manipulações, releituras ou técnicas de luz). Trata-se de Bagdá Café, um título alemão de 1987.

A bem da verdade, sem auxílio do oráculo Google não saberia citar o nome nem de elenco nem de diretores. Exceção para o canastrão Jack Palace, que está ótimo no papel de um pintor (uma metáfora do artista que enxerga luz onde os demais só vêm desgraças). O filme: http://en.wikipedia.org/wiki/Bagdad_Caf%C3%A9

Lembrarei, isso sim, para sempre, da força dramática do encontro de duas mulheres pertencentes a dois mundos diferentes e com dores tão iguais. Uma alemã largada pelo marido no meio Deserto do Mojave chega a um posto/hotel de beira de estrada e encontra uma negra sofrida que expulsara o marido cabra-ruim de casa. O choque as transforma.  

 E transforma também o lugar, que ganha cores, luzes e sons. Ganha vida. Então chega a “imigração” e, num anticlímax, expulsa a alemã gordinha de volta ao seu país. O lugar volta a decair. Ao ponto de um dia um caminhoneiro perguntar: “Onde está a mágica?” E ouvir da preta a seguinte resposta: “A mágica acabou. ” (A mala da alemã tinha sido trocada na viagem. Ela ‘ganhou de presente’  um kit de mágica e passou a usá-lo para animar o lugar).

No último sábado, quando soube do diabetes do meu filho caçula, me senti assim: com a sensação de que a mágica acabara.

Mas a alemã voltou. Desta vez com visto e toda a papelada necessária para viver na América. A mágica então ressurgiu.

Desde o sábado, Isaac passou a nos dar, diariamente, pequenas lições magia. Da mágica de ser feliz adoçando nossas vidas mesmo vivendo sem doce.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Chuva do caju

“Quando chega o verão é um desassossego por dentro do coração...”

Agosto chegou com seus sortilégios. Trouxe também a chuva do caju e a lembrança do tempo de infância, das brincadeiras de castanha. Quem nunca jogou castanha não sabe o que é bom. Há muita pureza, em que pese o valor monetário envolvido.

Castanha é um produto valioso na roça. Vários armazéns compram as safras de pequenos produtores para revender às grande indústrias. Na verdade, são atravessadores. A meninada do meu tempo costumava juntar castanhas para, ao final da safra, vender nesses depósitos e apurar algum trocado.

Antes, porém, a castanha armazenada virava objeto de desejo e brinquedo. A brincadeira remonta a tempos imemoriais. J. de Figueiredo Filho descreve o jogo e suas variantes no seu brilhante livro “Folguedos Infantis Caririenses”, recentemente reeditado pela Secretaria de Cultura do Estado. Nesse endereço há uma boa descrição da brincadeira: http://migre.me/5oM8G.

Quando a castanha torrada é aquela que a gente cata ou ganha no jogo, juro, ela é mais gostosa.  

Hoje, na cidade grande, não se joga mais castanha. Nem pião, nem futebol na rua ou no campo de terra batida. E, pra meu desassossego, também não se celebra mais a chuva do caju.


quinta-feira, 28 de julho de 2011

Cio da terra


Filho de família de agricultores, me escapa forma mais apropriada de homenagear essa gente que vive a terra. Sobretudo, destacar os que tiram o sustento da terra seca do Sertão. Por isso tomo emprestada esta canção nas vozes de Chico e Milton Nascimento. No dia do agricultor, esse homem de mãos calejadas, jeito rude e coração mole, um tributo a João Silvestre, Sebasto, Zé Lulu, Simeão, César, Damião, Joaquim, Valdemar... e muitos outros que tiveram ou ainda têm instilado em sangue a magia de afagar terra e, conhecendo a propícia estação, de fecundar o chão.  

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cara de cearense

Cresci ouvindo histórias de familiares, próximos ou distantes, que em busca de vida melhor, emigraram para o Sul e para o Sudeste. Uns foram escapar no Paraná. Outros, no Rio de Janeiro. A maioria, em São Paulo. Teve até uma tia do meu pai que fez fortuna em Sampa como dona de salão de beleza de bacanas, nos Jardins, região nobre da paulicéia. Contudo, a maioria apenas remediou-se, escapando das agruras da vida na roça.  

Vi a recente polêmica causada pela senhora que, pensando xingar um crítico de cinema, disse que o rapaz tinha “cara de cearense”. Fiquei intrigado. Fui atrás das opiniões e daquilo que costumamos chamar de “repercussão na web”. Tem opinião pra todo gosto. E pra todo mau gosto também. Umas inteligentes, outras burras, muitas grosseiras. Tenho cara de cearense. E daí?

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Peço socorro a Darcy Ribeiro, na sua tentativa apaixonada de “tornar compreensível” o Povo Brasileiro: “Foi desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos. Somos, em consequência, um povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor.”

Segue o mestre Darcy:  “Novo (o povo brasileiro) porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. (...)Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros. (os grifos são meus)

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Pois bem. Voltando aos meus velhos parentes emigrados, lembro a história contada pelos mais velhos, a título de anedota:

Cearense recém-chegado a São Paulo, matuto como o quê, não se deu com a privada. Foi procurar, na venda do bairro, um bom e velho penico para se remediar. Afinal de contas aquela borda fria de louça empatava qualquer serviço.  

Encabulado, chegou sem saber como falar com o senhor de finos modos do outro lado do balcão. Diante da dificuldade, chamou o sujeito a um canto e falou-lhe ao ouvido. O vendedor, pra tirar um sarro do cabeça-chata, falou a plenos pulmões, a fim de que todos os presentes ouvissem: “Traz um cearense aqui pro paraíba”.

O matuto ficou sem graça, enquanto os ‘sulistas’ riam e diziam pilhérias. Ao sair, passando pelo balconista que ria junto dos fregueses, disse, batendo no fundo do penico: “Esse cabe uns quatro paulista gordo.”

Darcy Ribeiro escreveu uma bela obra tentando nos desvendar a alma. Mas, essa coisa de INvolução tem produzido uma gente cada vez mais diferenciada. Diferenciada como aqueles quatro que o paraíba depositou no vaso de ágata.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Seu Teó

Preto e surdo, seu Téo andava sempre à pé, tangendo um jumento, com uma foice no ombro e um cigarro de palha no bico. No lombo do jegue, uma carga de lenha, de frutas (abundantes naquele pé-de-serra) ou de capim, alimento do pobre bicho. O filho caçula costumava acompanhá-lo. Era engraçado, pois o menino, um negrinho vivo, de olho grande, sempre alertava: “(Tá) Falando, pai”, quando cruzavam com alguém na estrada. Só então Teó retribuía o cumprimento.

Dentre outros serviços de roça, Teó castrava animais. Era costume entre os moradores daquelas paradas a criação de porcos, galinhas, carneiros e outros pequenos bichos. Depois de cevados, geralmente em datas especiais, viravam banquetes. Para a criação engordar sadia, é costume castrá-la. É aqui que entra Teó.

O bicho a ser castrado era um porco, na verdade, um bacurim. Teó ficou de ir, mas não apareceu para fazer o serviço. Adiou para a semana seguinte, depois mais uma semana e mais uma... As desculpas eram: ‘a Lua’, que não estaria propícia, ‘uma inflamação’ que apareceu não sei em que parte do seu corpo, isso, aquilo.

Minha mãe passou a aperrear o juízo do meu pai: “O tempo está correndo, esse bicho tá crescendo. É já que passa da hora de fazer esse serviço. Vai atrás de outra pessoa....” O velho – que, faça-se justiça ainda não era velho naquele tempo – aporrinhou-se. Amolou uma faca e partiu com tudo em direção ao chiqueiro.

Antes, passou por um fogareiro velho, que só era usado em ocasiões especiais, e pegou um punhado de cinza. E me chamou: “Venha me ajudar”. Tremi. No chiqueiro, pegou o bicho pela orelha, atirou ao chão e disse: “Segure”. Em instantes estava o porquinho sem os seus bagos. A cinza é usada para prevenir inflamações.

Muitos anos se passaram. Arribei do Cariri. Andei pelo Planalto Central para depois me fixar em Fortaleza. Jornalista, me vejo atualmente obrigado, por dever de ofício, a acompanhar de perto a tragédia da violência e as suas consequências para a sociedade. Na base de tudo – ou de quase tudo – a droga, o crack.

Numa viagem de férias ao sertão, soube que o negrinho de olho vivo, filho de seu Teó, entrara para o crime. Usuário de drogas, virou ladrão. Seguiu os passos de Cézar, que era o filho mais velho do capador de bichos. Cézar foi meu contemporâneo e parceiro de partidas de futebol em campos de terra batida. Foi no tempo da ingenuidade. Morreu no crime, à bala. Do negrinho, de quem nunca nem sequer soube o nome, não tive mais notícias.

Teó, diante da desgraça que se abateu sobre seus meninos, piorou do diabetes. Não sei se ainda é vivo para além da minha lembrança.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Prosa romeira

O cariri está em Festa. Centenário de Juazeiro. Romeiro pra todo lado. Uma beleza. Um dia desses era um arrabalde do Crato. Hoje, uma das mais importantes cidades do Nordeste. Obra do santo, milagres de um povo. 


A propósito do santo popular do Juazeiro (na imagem ai ao lado com o dr. Floro Bartolomeu), lembro de uma história que envolve Ivanildo Silvestre, primo de minha mãe e uma figura dotada de humor fora do comum. Em visita à Capela do Socorro, onde está enterrado o vigário, teria acontecido o seguinte diálogo com uma romeira: 

Ivanildo: "O Pe. Cicero foi enterrado ai?"

Romeira: "Foi, mas ele num tá ai mais não. Tá em Roma, com os santos e com o Papa".

Ivanildo: "Isso é um padre ou um peba?"


Não é preciso dizer que o primo velho teve de sair à francesa para não ser linchado. E foi gentilmente escoltado pela força policial até a porta de casa, no Crato.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Cristãos novos

Manoel de Castro Filho foi governador do Ceará entre 1982 e 1983. Vice do coronel Virgílio Távora, assumiu o Executivo quando o coronel saiu para o Senado.



Exatamente em 1982 tive meu primeiro contato com a política. Jósio de Alencar Araripe (pai dos Jornalistas Flamínio e Zínia Araripe) e Valmir Farias eram os candidatos do MDB à Prefeitura do Crato. Acredito que contra Ariovaldo Carvalho, capitão do Exército, hoje na reserva. Naquela época só existiam dois partidos políticos: Aliança Renovadora Nacional -Arena (nas versões 1 e 2) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).



Lembro de um comício cujo palanque era um caminhão. Não havia nem uma centena de pessoas a ouvir os discursos (incluídos os bebinhos). Foi defronte à bodega de João Nogueira, também aguerrido oposicionista do Bairro Pinto Madeira (Caixa Dágua). Era João quem guardava as facas dos matutos nos dias em que havia festa no salão da Igreja de São Sebastião, que ficava bem em frente à bodega.



Voltando à política: o lema da campanha da oposição (MDB) dava uma pista da dificuldade de vencer o poderoso esquema governista: “Vai dar Zebra”, numa alusão à zebrinha da Loteria. Fato é que não deu zebra nenhuma, e os “comunistas”, perdemos. Lembra Flamínio: “Os panfletos distribuídos de madrugada nas casas na eleição no Crato diziam que os ‘comunistas’ comiam criancinhas. No máximo elegiam um vereador.”



Anos após o comício, ouvi o então candidato Jósio Araripe lastimar: "Um dia desses eu estava sozinho e cima de um caminhão. Ontem, não tinha lugar pra mim no palanque, lotado de cristãos novos." Com a morte de Tancredo Neves, José Sarney havia assumido a presidência, agora pelo PMDB. E, com ele, uma leva de ‘cristãos novos’.
Na foto acima estou eu a discursar na formatura do ABC de uma turma que não era a minha. É que o governador Manoel de Castro, que não tinha muito o que fazer a não ser empregar parentes no governo, estava presente à solenidade e eu, segundo Madre Feitosa, diretora da escola, era “desenvolto em leitura”.
Agora estamos em 2011, distantes daqueles tempos de ditadura militar, de Lei Falcão e de medo, muito medo. Vivemos o chamado estado democrático de direito há mais de duas décadas. As instituições funcionam e, segundo dizem os especialistas nas folhas de jornais, se aperfeiçoam a cada dia.
O menino desenvolto em leitura hoje escreve uma linha ou outra, aqui e acolá. E ainda espera a zebra que nunca houve, enquanto observa novas e sucessivas ondas de cristãos novos sobre os palanques de sempre.



sexta-feira, 1 de julho de 2011

Lugar encantado

Em recente passagem pelo Crato acabei por me dar conta dos muitos lugares da minha infância que desapareceram. Isso mesmo: sumiram na bruma do tempo. Seja por ação de um administrador desastrado, seja pelo pesar dos anos a corroer a memória das gentes e a cobrir de pó as marcas antigas que caracterizavam o lugar. Sumiram.

Um dia deu na veneta de um prefeito alargar uma rua. Em pouco tempo foi abaixo o mais belo conjunto de fachadas da cidade, com seus azulejos portugueses, fachadas coloniais e muito da história do lugar. O Bar do Alagoano, ali na esquina da Praça da Sé, foi junto. Antes disso, muito antes, a casa de dona Bárbara de Alencar dera lugar a prédio público da coletoria estadual.

O antiquíssimo mercado Redondo virou prefeitura. O outro mercado, da rua Formosa (que virou Santos Dumont) foi demolido para dar lugar ao aglomerado de barracas de papelão e plástico a que se chama “Camelódromo”. Um casarão secular saiu de cena para que o Banco do Nordeste, com sua fachada envidraçada, surgisse na ribalta da modernidade. São muitos os exemplos.

Mas há casos em que os lugares, em vez de sumirem, se encantaram. É o caso da Ponte das Piabas, no Rio Granjeiro. Da ladeira do Castelo (a ‘descida na subida’ do Granjeiro. Está lá até hoje, mas saberão seus caminheiros o seu nome original?). São lugares simplesmente sublimados no tempo do coração da gente. O riacho Jacó - afluente do Batateiras que corre pro Salgado que faz o Jaguaribe grande – está lá. Eu sei disso. É o rio da minha aldeia.

O Jacó, apesar de muito agredido por anos a fio, permanece na extrema do sítio de minha família com as terras do engenho de Antuérpio de Melo (esse também um lugar que desapareceu, com canavial e tudo). Nesse tempo de estio, estará seco o Jacó. Mas, na primeira chuva, voltará a descer com estrondo, com sua água barrenta a escorrer entre as pedras. É no encantamento desse lugar que eu confio.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O pregão

Sempre que falo da minha infância falo de um menino beradeiro. É fato que a maior parte desse tempo vivi no sítio. As viagens à cidade eram diárias, para a escola. Mas, fins de semana e férias sempre foram de isolamento, no mato. Ademais, o tempo de ócio, mesmo em períodos letivos, era passado na roça mesmo. Mas, houve outro tempo, urbano. Curto, porém intenso.

A rigor, boa parte da minha primeira infância foi na rua. Melhor, na cidade. Primeiro no popular Alto do Seminário. Depois ali perto de onde hoje funciona a Estação Cultural, antiga estação da RFFSA. Mas, é de um terceiro endereço que me vem alguma lembrança dos meus tempos urbanos: Rua Sagrada Família.

Fica no sopé da barreira do Alto do Seminário, por trás da antiga garagem da Prefeitura do Crato. As casas do lado do poente, quase todas de calçadas muito altas, tinham seus quintais limitados pela enorme barreira. Alguns barracos eram edificados nalgum pequeno platô paredão acima. Já as moradias do lado nascente tinham davam seus quintais para a margem esquerda do Rio Granjeiro. Um dia pulei de uma calçada no meio da rua e quase perdi o dedão do pé esquerdo pra um caco de vidro.

Outra vez cheguei em casa pela mão de um vizinho bondoso. Ele me apanhara à margem do Rio Granjeiro, que amanhecera de enchente. O problema é que, menino pequeno, estava eu do lado de dentro da amurada, no batente que se formava no parapeito. Uma queda para dentro rio e tchau. Minha mãe rezou uma dezena de terços.

É desse tempo também a lembrança doce dos pregões: “Oooolhaaaa Cocaaada”, gritava o preto com o tabuleiro na cabeça. “Eeeeou o picolé”, convocava o vendedor que batia no isopor. Foi há muito tempo. O leiteiro passava no lombo do burro com seus latões. Esse não apregoava, apenas alertava na porta da freguesia certa: “Lêeech!”. E o doceiro: "Iôu o quebra-quêêêxo".

De todos eles, o que mais me animava era o vendedor de pães. Passava de tarde, na hora da merenda, com um tabuleiro comprido cheio de pãezinhos sovados, moreninhos, macios e de formato peculiar. E gritava, para excitação geral: “Ói o peito de moça!”

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Salve, Jorge

O sertanejo é religioso. Católico. Contudo, nos sertões adentro não se dá muito prestígio a São Jorge. A não ser quando se aponta a imagem do santo na Lua, com sua lança a fustigar o dragão. São José, Maria nas suas várias versões, São Sebastião, Santo Antônio, São Francisco, dentre outros têm prestígio infinitamente maior do que o santo guerreiro. O que dizer de Santana, a mãe de Maria, que no Ceará dá nome a duas cidades, uma no Norte, outra no sul do Estado?

Antônio Silvestre arribou do Sertão nos anos 50. Foi pro Rio de Janeiro que nem na canção de João do Vale:  “Mas plantar prá dividir// Não faço mais isso, não.//Eu sou um pobre caboclo,//Ganho a vida na enxada.//O que eu colho é dividido//Com quem não planta nada.//Se assim continuar//vou deixar o//meu sertão,//mesmos os olhos cheios d'água//e com dor no coração.//Vou pro Rio carregar massas//pros pedreiro em construção.

E foi. Lá, com o peito de desterrado, construiu uma bela família. Até que um dia resolveu visitar sua gente, seu torrão. Guardando os ensinamentos e fé católica que herdou dos pais, comprou presentes. Dentre eles, uma bela imagem de São Jorge, padroeiro do capital dos cariocas. Rumou pra casa satisfeito que só mesmo um indultado. Mesmo sabendo que as mesmas estradas que o conduziam ao Sertão o levariam de volta ao degredo.

Presente pra um, presente pra outro. Abraço, choro. A alegria contida como a água nas cabaças (com a licença do poeta H. Dobal).  A imagem de São Jorge foi solenemente entregue na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira da aldeia em que nascera. Antônio estava feliz. Unia ali a atual devoção com fé atávica.

Estamos agora no ano de 2010. Minha mãe, em visita a Fortaleza descobre que minha esposa Verônica é fã (acho que fã aqui é mais apropriado do que devota) de São Jorge. Ao ponto de querer botar o nome do santo em um dos nossos filhos. Não deu certo, mas a simpatia pelo guerreiro ficou. Na mesma hora surgiu a história do São Jorge trazido por Antônio do Rio há 50 anos e que estava esquecido numa gaveta qualquer. “Já que ninguém prestigia o santo, ele agora é seu”, prometeu minha velha mãe. E é mesmo.

Hoje a imagem (foto) está no Crato, à espera de um santeiro que irá recuperá-la em Juazeiro do Norte, que é terra de santeiros e de outros artistas geniais. Em breve, São Jorge será entronizado em lugar de destaque na casa do Reino da Sapiranga. Haverá festa. Talvez com direito a bênção e aguardente. E, assim que terminar, ligo pra Antônio Silvestre pra dizer a ele que sua fé está, enfim, no lugar em que merece.


segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Pastor Amoroso

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade
no peito.
 
Alberto Caeiro                                                                                                                       




Hoje é 123º aniversário de um gênio. Por isso compartilho este poema, que é muito belo e diz um pouco de mim, também ovelha tresmalhada no meio do mundo. Hoje tenho três cordeiros para apascentar. Não só de pão, mas também de carinho e proteção (e uma palmada ou outra, quando precisar).

    

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A grande viagem

O cartunista Ziraldo costuma dizer que “ler é mais importante do que estudar”. Tenho pleno acordo com isso. Sempre tive dificuldade com a educação formal. Acredito que tinha alguma razão quando, nas manhãs quentes de novembro, no Colégio Madre Ana Couto, questionava, no mais íntimo do meu ser, a razão estar ali, em sala de aula, tentando enfiar na cachola, fórmulas de química e de física, teoremas e equações. Podia estar lendo um Dostoiévski, por exemplo. Ou, quem sabe, ouvindo um velho matuto contar histórias ainda mais fantásticas do que as de Garcia Marquez.


Era eu muito jovem e chato como costumam ser os muitos jovens e chatos irrequietos. Esse meu sentimento foi reformado em parte. Em parte. Continuo achando a leitura mais importante. Continuo de ouvidos atentos às histórias do povo. Atento ao que, na Academia, chamam de ‘oralidade’. Pois bem. Muito do que encontrei nos livros, eu já havia vivenciado no dia-a-dia do sertão nos tempos de infância e juventude.

Disse em texto anterior como conheci Patativa, os Aniceto, Espedito Seleiro, Pedro Bandeira (cantador), Chiquim Eugênio (reisado). Foi na rua, na feira do Crato. Depois, muito depois, ao ver um deles na prateleira de uma livraria ou biblioteca, na capa de uma revista, em horário nobre na tevê, eu era (sou) tomado por um orgulho tímido, que curto sozinho, pleno de felicidade. Dessa forma, leitura e saber popular se misturaram em mim.

Luís da Câmara Cascudo nos legou obras geniais. Dentre elas, a tradução de “Travels in Brazil”. Trata-se de livro do anglo-português Henry koster publicado em Londres, em 1816. Koster passou 11 anos percorrendo o sertão nordestino a partir de 1809. Depois enfeixou suas impressões em livro.  “Antes dele, nenhum estrangeiro atravessara o sertão do Nordeste, do recife a Fortaleza, em época de seca, em comboio (...) comendo carne assada, dormindo embaixo de árvores...”, descreve cascudo.

Repare no que vai dizer o viajante sobre os nossos antepassados nordestinos: “Os sertanejos são muito ciumentos e há 10 vezes mais mortes por este motivo do que por qualquer outro”. Machistas desde a origem, portanto. Certamente estará ai uma das mais profundas raízes dessa tragédia chamada machismo.

Segue Koster: “O roubo é pouco conhecido. A terra, nos anos bons, é toda fértil, impossibilitando a necessidade que justificaria a tentação criminosa, e nas más colheitas todos sofrem igualmente a penúria. (...) Os sertanejos são corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros. Entretanto, em negócio de gado, ou qualquer outro, o caráter muda. Procurarão enganar-vos, olhando o sucesso como prova de habilidade, digna de elogio.”

Impossível não me emocionar cada vez que leio isso. Conheço essa gente. Muito terá mudado, é fato. Sobretudo no aspecto da violência, que deixou de ser meramente passional. Mas, conheço essa gente. Profundamente.

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Ouvi esta história dos mais antigos: “Sujeito tentava vender um belo burro cardão a fazendeiro importante e temido no lugar. Animal belíssimo. Era tardizinha, quase noite. Não se via defeito no bicho. Contudo, o ladino vendedor advertia: ‘Não faço negócios escusos. Repare no defeito, que está à vista.’ O coronel, encantado com o porte e aparência saudável do bicho, que além do mais era mansinho, nem sequer prestou atenção á advertência do vendedor. Comprou e pagou à vista. Pois não é que burro era cego!!”

Duzentos anos depois, nem o machismo nem a sabedoria (astúcia, segundo Suassuna) deixaram a nossa gente. Também continuamos corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros.

E eu tenho cada vez mais a certeza de que a leitura pode proporcionar grandes viagens, emocionantes reencontros.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Nas horas de Deus, amém III


Para além da religião formal católica e das festas populares profanas, o Cariri tem lá seus mistérios, suas transcendências. Seu sobrenatural.  Meu pai, homem de fé e doutrina, é avesso a crendices. Rejeita tudo que não estiver em acordo com os evangelhos. Já minha mãe, em que pese não abandonar a reza formal, acredita em ‘forças inexplicáveis’.

Certa vez, minha irmã caçula, que é 12 anos mais nova do que eu, estava machucada. Em decorrência de uma queda, chorava muito, incomodada por dores no punho. Médico não dera jeito. Radiografia mostrou que não era ‘nada demais’. Mas, passado o efeito do analgésico, lá estava a criança a chorar de novo, com dores. Devia ter dois anos, no máximo.

Meio na surdina, já que meu pai não queria acordo como essas coisas, minha mãe me elege como cúmplice. Vamos juntos levar a pequena para uma rezadeira, que iria ‘costurar’ a contusão. Trata-se de ritual para curar machucados, torções, ‘carne triada’ e ‘junta desmentida’.

Somos recebidos no terreiro da casa simples, de taipa. A velha tem a cabeça coberta por um pano branco e um rosário de contas no pescoço. De posse de uma folha verde, agulha e linha grossa, começa o ritual. A senhora está sentada vis-à-vis com a minha mãe, que segura a filha ao colo. Eu observo de esguelha, meio sem entender, meio sem acreditar.

A velha diz e minha repete por três vezes enquanto costura na folha, como a tecer bordado mágico: “O que eu coso?” “Carne triada, osso, nervo torto, aqui mesmo eu coso...São Frutuoso, com os poderes de Deus as bênçãos da Virgem Maria.”

Em seguida benzedeira manda ofertar a São Frutuoso, Nossa Senhora e a Jesus Cristo, três Padres-Nosso, três Aves-Maria e três Glória ao Pai. Durante o ritual, a criança dormiu. E, garante a minha mãe, ao acordar, não reclamou mais do machucado.

Eu me lembrava claramente do episódio, mas não da reza em si. Em recente passagem pelo Cariri, uma tia me relembrou a reza. Dessa forma, a gente simples do Sertão vai cosendo histórias, sem deixar as tradições nem as crenças caírem no abandono. Com fé em São Frutuoso!  Com os poderes de Deus, e com as bênçãos da Virgem Maria. Viva a cultura popular.