Não sem espanto, leio na página eletrônica da Agência Brasil que o “Ministério da Educação (MEC) vai distribuir tablets – computadores pessoais portáteis do tipo prancheta, da espessura de um livro – a escolas públicas a partir do próximo ano.”
A informação foi dada pelo próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, durante palestra a editores de livros escolares, na 15ª Bienal do Livro. O objetivo, segundo o ministro, é “universalizar o acesso dos alunos à tecnologia”.
Diz mais a notícia: “O ministro disse que o MEC está em processo de transformação. “Precisamos, agora, dar um salto, com os tablets. (...) Em 2012, já haverá uma escala razoável na distribuição de tablets.”
A novidade veio a lume enquanto travava-se na cidade um debate desencadeado a partir de infeliz campanha publicitária de importante escola particular onde se diz que “tablets substituem livros”. Choveram críticas. Nas mídias sociais, sobretudo, por irônico que pareça. E aquilo me martelou o juízo por dias: “tablets substituem...”
Tive a fortuna de ser filho de professora vocacionada. Mais do que isso: ela sabia o poder do estudo, da leitura. Afinal de contas, o homem deve ser “bem lido e bem corrido” ensina o saber popular, dando importância ao estudo e às viagens.
Um dia me chegou às mãos infantis, da biblioteca do Grupo Escolar Presidente Vargas, um livro. O livro. A criança maravilhou-se! Um alumbramento! Livrinho surrado, capa em desgraça, páginas amareladas pelo tempo. Folhas soltas.
Logo na dedicatória, a primeira epifania:
"À memória dos sete grandes geômetras cristãos ou agnósticos: Descartes, Pascal, Newton, Leibnitz, Euler, Lagrange, Comte, (Allah se compadeça desses infiéis), e à memória do inesquecível matemático, astrônomo e filósofo muçulmano, Buchafar Mohamed Abenmusa Al Kharismi, (Allah o tenha em sua glória!), e também a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças, eu, el-hadj xerife Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan (crente de Allah e de seu santo profeta Maomé), dedico esta desvaliosa página de lenda e fantasia."
De Bagdá, 19 da Lua de Ramadã de 1321.
Esse livro foi não só o primeiro, mas o mais importante que já li. Ele foi o indez.
Não, não é o mesmo livro. Não aquele do grupo escolar e que ia ser descartado por ser de edição anterior à reforma ortográfica de 1971. Aquele está aqui, na minha estante, em lugar privilegiado e com capa dura que mandei fazer na Tipografia Cariri, que não existe mais.
Olhando pra ele, e diante dos tablets da moda, vejo que também adquiri ao longo desses anos todos, uma camada de pátina amarelo-suja, como no poema abaixo.
Que venham os tablets com seus saltos ministeriais. Que venham os seus sucessores e as ansiadas transformações do MEC... Eu fico por aqui com a minha “desvaliosa página de lenda e fantasia.”
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GESSO
Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as minhas linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
[pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[mordente da pátina...
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
(Manuel Bandeira)