Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sábado, 17 de setembro de 2011

Pé no chão

Era fim de noite na redação do jornal. Fechamento. Para quem não conhece a rotina de uma redação, trata-se da hora-inferno. Tudo tem de ser finalizado com pressa e perfeição, duas coisas que tendem a não dar certo. Pior: sempre aparecem imprevistos para acabar de esculhambar o que já beira o caos. Lógico que há edições previsíveis, modorrentas, até. Mas, o comum é a adrenalina.

O sertão, quem acompanha o blog sabe, sempre trago comigo e em mim. Não importa a ocasião nem o lugar.

A noite de 12 de dezembro de 2002 foi um desses fechamentos de edição, digamos, complicado. Quando tudo parecia se encaminhar pra um final a bom termo, eis que o jogo vai para a prorrogação e com um só jogador: eu.

Explico: edição nos seus ‘finalmente’ me chega o editor do jornal com papel contendo um enorme X de caneta sobre o texto impresso. Lacônico: troque isso ai. Era a cabeça da coluna editorial do jornal, que não é assinada e, portanto, tem importância toda especial, pois a empresa assume as informações que ali estão publicadas. Além da abertura da coluna as duas notas seguintes também caíam, já que eram coordenadas com a nota principal 

Lula acabara de ser eleito presidente da República pela primeira vez. O dia seguinte, 13 de dezembro, seria aniversário de 90 de nascimento de Luiz Gonzaga.

Saiu o texto que se segue:









































O eterno Gonzaga


Hoje é dia de pegar a estrada para Exu. Dia de festejar. Seu Luiz faria 90 anos. O caboclo vai encostar os ferros de tardezinha, depois de chiqueirar os bezerros, selar seu melhor animal e partir para a cidade. Vai ouvir Dominginhos entoar as canções imortalizadas pelo velho Gonzaga.

Talvez não saiba, roceiro humilde que é, que aqueles versos, aquelas melodias, aqueles acordes também imortalizam a alma sertaneja (por que sertão é dentro da gente, já dizia Guimarães Rosa).

Vai caboclo. Vai que a noite já vem. Vai homenagear aquele a quem todos chamam de rei. Que se tornou Luiz por inspiração da santa do dia; que cantou o sertão por que viveu o sertão, brotou no sertão; e que, mesmo sendo rei, nunca deixou de fazer reverência a Januário, seu pai.

Festa
E o caboclo vai. Não tendo montaria vai à pé: ...‘‘Mas o pobre vê nas estradas, o orvaio beijando a flô/ vê de perto o galo campina, que quando canta muda de cor/ vai moiando os pés nos riacho, que água fresca nosso Senhor/ vai oiando coisa a grané/ coisa que pra mode vê, o cristão tem que andar a pé’’.

Inspiração
Que a lira de seu Luiz sirva de inspiração para outro pernambucano Luiz. O futuro presidente tem pela frente uma légua tão tirana quanto a enfrentada por Gonzaga. Vencer a fome, a precisão, a dependência da chuva... Botar o sertão num mapa que não seja o da miséria. De onde estiver, seu Luiz estará contente ao ver seu povo feliz.”


Essa história estava na gaveta do esquecimento até que um dia, através de uma rede social, a jornalista Samira de Castro me pediu para escrever alguma coisa sobre seu Luiz. Sem inspiração no dia – que não era mais de fechamentos – fui atrás da coluna redigida há quase 10 anos. E me lembrei de como é importante o cabôco ter os pés no chão. Que é pra mode ver as coisas como elas realmente são.

Um comentário:

  1. Meus pés estão tão fincados no chão que, às vezes, os tornozelos doem. Por isso uma das minhas maiores dores é sempre estar vendo as coisas como realmente são, por mais que eu queira não ver, sonhar um 'cadinho'. Às vezes, muitas vezes, na verdade, eu queria tanto voltar a ser a nova aprendendo com os mais velhos, com os mais sabidos, com os mais antigos no lugar,viver o mesmo sonho com os amigos. Às vezes não é só ter pé fincado no chão que dói não: ter saudade também. Beijos, Kranho.

    ResponderExcluir