Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A palha e o oco

Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 


2. 

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
(João Cabral de Melo Neto)

A debulha de um punhado de vagens de feijão me trouxe o poema acima.

Começou no domingo passado, quando minha irmã me deu um saco de feijão meio seco, meio verde.

Não. Na verdade, começou desde sempre: cresci vendo ora pai, ora mãe, debulhar feijões. Coisa de quem tem o pé na roça. Os pés na roça.

Nessa tarefa, meu pai sempre foi mais presente. Com paciência que não demonstra comumente em outras atividades, ele é capaz de permanecer horas a fio sentado, bacia no colo, vasilha a receber as cascas ao rés do chão.

Nunca havia percebido – até instantes atrás – que aquele gesto prosaico, comum a tantas casas simples de pessoas ligadas ao Sertão, encerrava lições de perseverança.

No início, o volume grande de vagens desencoraja a empreita. Tempo passa, serviço não rende. Terminada a tarefa está lá um punhado de feijão. Garantia das crias apascentadas.

No meu feijão o ciclo está incompleto: debulhado, catado, pronto para a panela. Faltou relação mágica do plantar e do colher. Do preparar a terra.

Faltou ver o feijão brotar. Frágil, duas folhinhas. Crescer, esparramar-se pela terra. Florar, soltar canivetes – sim, as pequenas vagens, são a pré-adolescência do feijão, com seus canivetes ansiosos.


Depois-a-colheita-rápida-senão-vem-a-chuva-e-põe-tudo-a-perder.

Enquanto catava meu punhado de feijões, as palavras começaram a emergir. Impregnadas de um sentimento mágico que envolve pai e mãe, meu mais-que-perfeito baião de dois. O poeta deverá me perdoar os excessos, as gorduras, a palha e o oco que permanecem na página.

E, é claro, perdoará também a ausência da pedra que daria ao texto seu grão mais vivo. Mas, dá licença, queria apenas o prazer de catar meus feijões ombro a ombro com meus pais.