Catar feijão
1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
(João Cabral de Melo Neto)
A debulha de um punhado de vagens de feijão
me trouxe o poema acima.
Começou no domingo passado, quando minha
irmã me deu um saco de feijão meio seco, meio verde.
Não. Na verdade, começou desde sempre:
cresci vendo ora pai, ora mãe, debulhar feijões. Coisa de quem tem o pé na
roça. Os pés na roça.
Nessa tarefa, meu pai sempre foi mais
presente. Com paciência que não demonstra comumente em outras atividades, ele é
capaz de permanecer horas a fio sentado, bacia no colo, vasilha a receber as cascas ao rés do chão.
Nunca havia percebido – até instantes
atrás – que aquele gesto prosaico, comum a tantas casas simples de pessoas
ligadas ao Sertão, encerrava lições de perseverança.
No início, o volume grande de vagens
desencoraja a empreita. Tempo passa, serviço não rende. Terminada a tarefa está
lá um punhado de feijão. Garantia das crias apascentadas.
No meu feijão o ciclo está incompleto: debulhado,
catado, pronto para a panela. Faltou relação mágica do plantar e do colher. Do
preparar a terra.
Faltou ver o feijão
brotar. Frágil, duas folhinhas. Crescer, esparramar-se pela terra. Florar,
soltar canivetes – sim, as pequenas vagens, são a pré-adolescência do feijão,
com seus canivetes ansiosos.
Enquanto catava meu punhado de feijões,
as palavras começaram a emergir. Impregnadas de um sentimento mágico que
envolve pai e mãe, meu mais-que-perfeito baião de dois. O poeta deverá me
perdoar os excessos, as gorduras, a palha e o oco que permanecem na página.