Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sábado, 30 de abril de 2011

"Se eles são bonitos..."

Manezim, Sorriso, Damião, Chico, Incha-Tetê e uma infinidade de outros doidos pontificavam na ruas do Crato no meu tempo de meninice. De alguns, lembro vagamente. De outros, até dos odores que exalavam por andarem ao léo, entregues à própria sorte e ao escárnio dos meninos.

Um moleque insultava: “Chico, cadê a noiva?” Estava dada a senha. A enorme bengala era girada a esmo, não importando quem estivesse por perto. Chico era cego e a molecada aproveitava para aperreá-lo justamente quando próximo a aglomerações. Muita senhora foi atingida a bengaladas.

Manezim é o de minha mais remota lembrança. Vivia bêbado e costuma gritar o seguinte bordão: “Ô cheiro de peixe. É o puro surubim!” Isso a plenos pulmões. Nunca soube o que queria dizer, se é que aquela frase lançada ao vento tinha algum sentido.

Sorriso era uma louca de dar dó. Surda-muda, perambulava pelas ruas e, segundo contavam os mais velhos, teria botado no mundo vários filhos que haviam sido tirados dela e adotados por famílias aprumadas. Todos fruto de estupros. Tinha esse apelido  por ser desdentada e parecer estar sempre a sorrir, apesar da tragédia em que viveu mergulhada.

Incha-Tetê é uma das figuras mais famosas. Dizem que era uma das "dádivas" do Juazeiro do Norte para o Crato (alguns vão lembrar do ditado que corre até hoje sobre a ingratidão daquela cidade com o Crato). Pode o doido ter o nome do próprio insulto? “Incha-Tetê”.

Jerrim, o engraxate da foto ai do lado (gentilmente cedida por W. Bernardo), ainda hoje está na ativa. Batizou-se assim, acredito eu, num misto de homenagem e admiração por Jerry Adriani, galã da Jovem Guarda. Tanto que na caixa em que carrega seus apetrechos pode-se ler: "Eu sou o Jerrim das meninas”. Um grande sujeito. Fã das velhas sessões de cinema do Cine Cassino Sul-Americano. 
Éramos muitos os doidos daquele tempo.

"...Sou Jerry Adriani."

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O bispo


Dom Vicente de Paulo Araújo Matos foi o terceiro bispo da Diocese do Crato. Comandou o clero local de 1961 a 1992. Um homem injustiçado. Filho de família abastada de Itapajé, Dom Vicente tinha porte e beleza de galã de cinema. Ganhou o apelido cretino de ‘Dom Ratão’. Talvez pelo fato de possuir sempre o Opala Comodoro mais moderno da época e morar num Palácio Episcopal. Pura ignorância.


Foi ele quem fundou a Faculdade de Filosofia do Crato, embrião da  Universidade Regional do Cariri (URCA). Também fundou os colégios Pequeno Príncipe e Madre Ana Couto (nos quais estudei) e o Centro de Expansão (local de retiros religiosos).
No Centro de Expansão ouvi dele a seguinte lição, durante um evento religioso que reunia jovens: “Hoje se banaliza tudo. “Eu pergunto: Você gosta de pão de milho? A resposta é: A-d-o-r-o! Errado! Só se adora a Deus!”.


Reza a lenda de que seu Antônio Berrêdo, motorista do bispo era um homem, digamos, de poucas palavras e paciência. Certa vez, em viagem a Fortaleza no carrão do prelado, teria se dado o seguinte diálogo:
Bispo: “Olha o jumento”
Berrêdo: (silêncio)
Bispo: “Aquela mulher pode atravessar. Buzina.” 
Berrêdo: (silêncio)
Bispo: “Cuidado. Essa curva ai na frente é perigosa.”
Berrêdo: (silêncio)
Bispo: “Tá muito ligeiro.”
Berrêdo, parando o carro no acostamento: “Tome, senhor bispo. Leve o seu carro.”
O Bispo riu amarelo e assumiu a direção. No resto da viagem reinou silêncio sepulcral.
 
Foi Dom Vicente quem me conferiu o sacramento da Crisma, numa noite de lua, na Quadra Bi-Centenário.  Poucos dias antes, na estrada do Granjeiro onde eu morava, vi o bispo parar o seu carrão para dar carona a uma senhora. Ela vinha dos lados das nascentes do sopé da Chapada do Araripe com uma enorme trouxa de roupa na cabeça. O sol estava escaldante. 


Naquele instante, descobri quem eram os ratos.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Injeção de saudade

Graças ao dr. Tarcísio Pierre – otorrino dos bons e bom amigo da família – tenho preservadas as minhas amígdalas. Menino, eu vivia em intervalos entre uma crise de garganta e outra. Febres altas, garganta fechada, sempre doendo, dificuldade de engolir. Pus. Anos a fio, minha mãe fez cerrada campanha por uma cirurgia para extrair minhas amígdalas. O doutor foi contra, dizendo que, na adolescência, as crises sumiriam (de fato, sumiram).
Para o martírio de mamãe, adolescência não é de um dia para o outro. Os tratamentos foram os mais variados: desde os tradicionais alopáticos, até os menos ortodoxos, como banha de galinha e de tejo. Mas foram as injeções, tortura de qualquer criança, que mais marcaram. Primeiro pelo pavor que sentia, hoje pela saudade.
Como morávamos fora da cidade e o transporte era muito ruim, recorríamos a uma vizinha moradora de um sitio próximo. Dona Neuza era esposa de um bodegueiro, dona de casa que, sabe-se lá por quais desígnios, aplicava injeções. E como aplicava!
 
Para eu-menino a tortura começava no trajeto até a casa da velha senhora, que tem a voz mansa e um sorriso gostoso de avó bonachona. Cerca de 500 metros de calvário. Depois, vinha o ritual da preparação do aparelho de vidro, que não era descartável. Tudo era esterilizado dentro do próprio estojo da seringa. Lembro da chama do álcool, do algodão frio limpando o lugar da agulhada no bumbum.

Dona Neuza, depois de viúva, mudou-se para outro estado. Deixou de herança um velho pilão, do qual sai a paçoca mais deliciosa do mundo. E as minhas amígdalas intactas.
  

terça-feira, 26 de abril de 2011

Pedro e o Projeto Minerva

Pedro de Alvino, ou simplesmente Pedro-dos-Pequis, era um desvalido que vivia com a mãe no sopé da Chapada do Araripe.  Na verdade, não sei até hoje como nem de quê ele e a mãe sobreviviam. Na safra do pequi, Pedro passava, manhãzinha, na estrada do Granjeiro com um saco enorme na cabeça em direção à feira. Vendidos os pequis, Pedro voltava pra casa, fim da tarde, começo de noite, bêbado de fazer dó.
Nessa hora, invariavelmente passava lá em casa. Os cachorros e o bafo de cachaça misturado ao odor forte do pequi o denunciavam ainda no terreiro. Tomava a bença à minha, pedia água, fósforos para acender um cigarro de palha que sempre trazia na orelha. Comia e levava uns pitos de minha mãe pelo estado lastimável de sempre.
Em 1970 o governo militar de plantão criou o “Projeto Minerva” (http://www.youtube.com/watch?v=Mz0gtsk0gCs). Foi, senão a primeira, uma das iniciativas pioneiras de educação à distância no Brasil. Acho quem em 73 ou 74 minha mãe passou a dar aulas no Minerva. O material didático era constituído de alguns lápis grafite, borrachas e cartilhas. Tinha também um Motorrádio do governo que ficava lá em casa era levado toda noite ao grupo escolar, que não tinha luz e era iluminado por um lampião a GLP (gás de cozinha). Pedro-dos-Pequis era um dos alunos. Todas as noites, como não tinha com quem ficar, eu ia com a minha mãe para escola. Uma diversão.
Lembranças daquele tempo são esparsas: a luz pouca, as cartilhas com letras pontilhadas para cobrir, a vinheta do programa, os lápis que sumiam entre os dedos grossos dos alunos-agricultores. Ficava orgulhoso de ser sempre o primeiro a terminar a tarefa. Naquele tempo eu também experimentava as primeiras letras. Eu segui. Pedro e os demais ficaram na sombra de Minerva.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Seu Júlio

Quando eu era menino, as coisas aconteciam em ritmo cadenciado. Lento, mesmo. Meu pai trabalhava no comércio, no Centro do Crato. Às segundas, quando acontecia a feira da cidade e as lojas não fechavam para o almoço, eu tinha de ir da escola pro centro depois da aula. Ali esperava horas intermináveis que um adulto me resgatasse até a casa, que era fora cidade, num sítio.

Foi num desses intervalos famintos que conheci algumas das pessoas mais incríveis da minha infância. Falo dos "chapeados". Muita gente deverá estranhar: chapeado? Eram assim chamados os homens que trabalhavam carregando mercadorias em geral na cabeça. Quase todos pretos. Tinham essa denominação porque eram cadastrados numa associação (ou controlados pela prefeitura) e no alto da testa, num chapéu de couro forrado por dentro para amaciar a dureza da carga, havia um número gravado numa chapa metálica.

Mané-Rabo-Grosso, Paciente, Zé Luiz, Sabonete, 90 (esse um dos mais populares pela sua irreverência. 90 era número de seua chapa). Feinho (que a gente chamava mesmo era de 'Feim' e depois ficou cego e esmolou até o fim de seus dias). E Júlio Cabral da Penha, uma legenda. Seu Júlio era um negro alto, de voz grave e caráter de cedro. Um dia, numa dessas segundas-feiras em que eu esperava na minha meninice, comecei a paquerar com um brinquedo que um camelô vendia na calçada, próximo ao ponto dos chapeados.

Era coisa prosaica: um pedaço de isopor esculpido de forma a parecer um boneco retangular. Na extremidade inferior, um metal colado completava o João-Teimoso. Seu Júlio, para quem cada moeda era parte importante na composição da feira que levaria ou deixaria de levar para a sua numerosa família, aproximou-se e, discretamente, tirou Cr$ 0,50 do bolso e deu de presente o boneco de isopor.

Um alumbramento que só seria superado em emoção muitos anos mais tarde, quando eu tomei cosnciência do tamanho daquele gesto, que era do tamanho de Seu Júlio.

Como não há comigo registros em imagens daquela gente, recorri ao painel "Estivadores", do artista plástico Zenon Bareto, para fazer essa homenagem aos chapeados do tempo de eu menino. E, em especial, a seu Júlio, que me deu de presente o mais valioso brinquedo que já ganhei.

domingo, 17 de abril de 2011

Cariri reeditado

"Os meninos do meu tempo gostavam de ver o acendedor de lampião, ao lusco-fusco, em sua tarefa cotidiana". O trecho acima é do livro "Folguedos Infatins Caririenses", de J. de Figueiredo Filho. Este e outros seis volvumes ("História do Cariri" I a IV, "...Engenhos de Rapadura do Cariri", e "Cidade do Crato") foram reeditados pela Secretaria de Cultura do Estado, em parceria com a Universidade Federal do Ceará. 

J. de Figueiredo Filho é descrito pelo seu neto, Flamínio Araripe, como um homem que gostava de banda cabaçal, reisado e dos Beatles. Mas não só isso. Na sua obra, que comecei a ler com voracidade, reencontro um Cariri que julgava só existir no seio de parte de minha família. O Crato das ruas de antigamente: minha avó, Maria Silvestre, até morrer chamava a Santos Dumont de Rua das Laranjeiras. 
Meu pai e eu ainda chamamos a Pedro II de Pedra Lavrada. Rua Formosa! Beco dos Calangos.

Expressões como "botador de sentido", alguém sabe o que é? Pois é! Meu povo ainda lança mão de jóias como essa. Trata-se daquele que pastora uma lavoura ou um pequeno rebanho. Aquele que volta todos os seus sentidos para algo. 

Prestem atenção no que receita J. de Figueiredo Filho para a infância: "A criança não pode ser criada exclusivamente na dura realidade das coisas. É erro de educação querermos enquadrá-la imediatamente na objetividade da vida. O menino tem de criar, de imaginar coisas fantásticas, até que acorde, diante do mundo real. (...) acreditar em fadas e em gênios, do bem ou do mal. Não devemos , fora do tempo, destruir nele esse mundo imaginário. Esperemos um pouco. Tudo isso soçobrará, paulatinamente, sem choques abruptos..." 

Grande lição. Grandes lições. Leitura apaixonante. Muito obrigado Flamínio. 

PS. Tenho um filho chamado João que gosta, como toda criança de 12 anos, de video-game e de internet, mas ama Beatles e Luiz Gonzaga. Ah, e todos os anos ele passa férias no Cariri.

sábado, 16 de abril de 2011

Lição das coisas

No tempo em que eu era menino, a escola ensinava uma porção de coisas sobre o torrão em que nasci. Geografia (lembro que sabia de cor o nome de todos os municípios que faziam divisa com o Crato). História, enfim...ensinavam a gente que era importante conhecer algo a mais sobre o nosso mundo primeiro. 

Por algum motivo que não sei explicar, tenho muita coisa daquele tempo guardada numa gaveta esquecida em algum ligar do armário das coisas inservíveis da minha memória. Hoje, por um acaso qualquer, encontrei essa imagem numa página de busca da web. Logo a gaveta se abriu. Saltaram de lá muitas lembranças. 

Vou ficar aqui apenas nas que dizem respeito ao brasão: ensinavam na escola que o cocar no alto remete aos guerreiros cariris; de cada lado, ergue-se uma vara de cana-de-açúcar, com seus pendões brancos como asas de anjos; no centro, os quatro C significando “Crato, Ceará, Comarca do Cariri”; dentro dos quatro C, uma remissão à religiosidade da gente do lugar e, acredito eu, alguma herança pernambucana. Abrir essa gaveta precisa de uma chave muito especial. Hoje, a chave foi o brasão da minha infância. Mas como dói ter saudade.



"Se essa rua, se essa rua fosse minha..."

Em 15 anos, Fortaleza se tornará uma senhora de três séculos. O que eu posso fazer nesse tempo pra que esse torrão que me acolhe há quase 25 anos seja um lugar melhor? Esse é o sentimento que me invade na data de... hoje. Sim, pois tendo enterrado o umbigo no Crato, foi esta cidade que me acolheu retirante.

Acolhimento num tempo que era outro, bafejado ainda por uma longa ditadura, mas com ares libertários. Afinal, foi Fortaleza que elegeu uma mulher, de esquerda. Era tempo de incerteza.

Morei numa pensão no Centro (Floriano Peixoto com Clarindo de Queiroz). Depois, já nos bancos da UFC, na Residência Universitária (Tristão Gonçalves com Travessa Quixadá, por trás do Teatro Universitário). Tempo rico, de muito aprendizado. Tempo em que passei a me interessar mais fortemente pela cidade. Busquei nos livros, na gente mais velha e nos jornais impressos a alma da cidade.

Talvez tenha encontrado algo desta alma ao palmilhar a Fortaleza que vai além da Aldeota, além do shopping center e do escurinho do cinema. A Fortaleza real se encontra na bodega do bairro, na feira, no Centro que fervilha de gente. O que posso fazer por ela nesses próximos 15 anos? Que cidade deixarei para os meus filhos, que são fortalezenses? O que mais perderemos, se já perdemos tanto? Por que essa ânsia de nos tornamos iguais às grandes cidades do mundo com lanchonetes tipo fast food ao passo em que deixamos pra trás o pega-pinto e a bananada? Aonde foram parar os cajueiros botadores? Pecado? Hoje tem em qualquer esquina, sem graça nenhuma. Sem pão, espíritos morrem à mingua. 

Personagens como Chagas dos Carneiros, Zé Tatá, Burra Preta, o prórpio Iôiô... Gumercino, que seja, pra citar um mais recente. Quem seriam nossos "tipos" de hoje? Ê, Fortaleza. Metrópole não acolhe tipos populares... A não ser nos bairros, onde a vida se realiza. São 5h40 da manhã. Na Sapiranga onde moro, um sabiá saúda a aurora que inrrompe cinzenta. A imagem de hoje é apenas o registro de tudo que poderia ter sido e que não foi. 

"...É porque te quero bem."

Fortaleza, 13 de abril de 2011.