Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Seu Júlio

Quando eu era menino, as coisas aconteciam em ritmo cadenciado. Lento, mesmo. Meu pai trabalhava no comércio, no Centro do Crato. Às segundas, quando acontecia a feira da cidade e as lojas não fechavam para o almoço, eu tinha de ir da escola pro centro depois da aula. Ali esperava horas intermináveis que um adulto me resgatasse até a casa, que era fora cidade, num sítio.

Foi num desses intervalos famintos que conheci algumas das pessoas mais incríveis da minha infância. Falo dos "chapeados". Muita gente deverá estranhar: chapeado? Eram assim chamados os homens que trabalhavam carregando mercadorias em geral na cabeça. Quase todos pretos. Tinham essa denominação porque eram cadastrados numa associação (ou controlados pela prefeitura) e no alto da testa, num chapéu de couro forrado por dentro para amaciar a dureza da carga, havia um número gravado numa chapa metálica.

Mané-Rabo-Grosso, Paciente, Zé Luiz, Sabonete, 90 (esse um dos mais populares pela sua irreverência. 90 era número de seua chapa). Feinho (que a gente chamava mesmo era de 'Feim' e depois ficou cego e esmolou até o fim de seus dias). E Júlio Cabral da Penha, uma legenda. Seu Júlio era um negro alto, de voz grave e caráter de cedro. Um dia, numa dessas segundas-feiras em que eu esperava na minha meninice, comecei a paquerar com um brinquedo que um camelô vendia na calçada, próximo ao ponto dos chapeados.

Era coisa prosaica: um pedaço de isopor esculpido de forma a parecer um boneco retangular. Na extremidade inferior, um metal colado completava o João-Teimoso. Seu Júlio, para quem cada moeda era parte importante na composição da feira que levaria ou deixaria de levar para a sua numerosa família, aproximou-se e, discretamente, tirou Cr$ 0,50 do bolso e deu de presente o boneco de isopor.

Um alumbramento que só seria superado em emoção muitos anos mais tarde, quando eu tomei cosnciência do tamanho daquele gesto, que era do tamanho de Seu Júlio.

Como não há comigo registros em imagens daquela gente, recorri ao painel "Estivadores", do artista plástico Zenon Bareto, para fazer essa homenagem aos chapeados do tempo de eu menino. E, em especial, a seu Júlio, que me deu de presente o mais valioso brinquedo que já ganhei.

8 comentários:

  1. Salve, salve Silvestre, a crônica como expressão da memória, rico acervo das existências. A palavra como artífice do que fomos, somos e seremos. Um grande beijo, meu cronista.

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  2. Eita que maravilha Henrique! Assim você me lasca lembrando da Cantina do Oliveira do meu pai, quando ainda era mercearia! Lá nós tínhamos um chapeado oficial pra entregar as compras da freguesia, era o "seu Luiz 26", onde 26 era o seu número de chapeado. As entregas eram feitas por ele, levando na cabeça em caixotes de madeira, onde vinham mercadorias como Leite Ninho, Neston, óleo de soja e muitas outras mercadorias. Imagina o tanto de árvore que era derrubada pra fazer aqueles caixotes. Tudo vinha em caixa de madeira. Pois é, e "seu Luiz 26" era um cara bacana, tranquilão. Um cara feliz. A gente pagava por entrega e ele ainda ganhava umas gorjetas, pois era um cara muito simpático e educado. Sabia chegar e sair. Atendia as "madamas" do Crato com uma presteza incrível!
    É isso amigo. "90" também foi outra figura folclórica do Crato. Massa sua crônica!
    Sucesso sempre camarada!

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  3. Meu querido Kranho, você é tudo mesmo e vai ser um puta de um prazer acompanhar a sua vida de outrora aqui. O nosso passado é a melhor explicação dos nossos comos e porques de hoje. Delícia viajar nos seus textos, nas suas histórias, tão únicas, tão leves, tão você. Mil beijos.

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  4. Pense num cantinho bom. Gostei muito do blog. Parabéns!

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  5. Brinquei demais com esses "joões-teimosos" de isopor. Agora, esse que você ganhou, tem um valor sem tamanho. Quase não cabe no coração.

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  6. enrolado com papel celofane...o joão teimoso que trouxe consigo a generosidade sincera.
    Cacá (esse troço de comentar como acaba usando contas abertas...rs)

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  7. Sim, Miguel... no papel celofane. Vc quase me fez chorar agora. Nunca imaginei que mais alguém tivesse isso na lembrança.

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