Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Meu pequeno caubói

 “Esse cabra do queixo furado é macho que só a gota!” Essa foi a descrição que meu pai fez para o menino por ocasião da abertura do faroeste “O Último Por do Sol” (1961). O ‘cabra macho de queixo furado’ não era ninguém menos do que o ator Kirk Douglas. Meu pai sempre foi fã do western. Tudo começou quando os seus irmãos mais velhos saíram do sertão do Assaré para estudar no Crato. Vivia-se, então, o auge do Segundo Ciclo do Algodão. Meu avô era próspero comerciante no lugarejo que praticamente pertencia à família, distante quatro léguas da terra de Patativa.


Os irmãos mais velhos voltavam da cidade com as novidades – meio estranho para quem era interno no Seminário São José, mas deixa pra lá – do cinema. Contavam as histórias narradas nas telas, falavam dos atores, descreviam a aridez do Oeste norte-americano e partiam para brincadeiras de mocinho e bandido. Os menores, que haviam ficado na roça, se empolgavam e iam junto na deliciosa brincadeira. Um deles quase perdeu uma vista com ‘tiro’ certeiro de baladeira.

Estamos agora no mês setembro de 2011. Mais precisamente no sábado, dia 18. Meu filho caçula se estranha com um irmão por causa de jogo no vídeo-game. Mando parar a ‘profia’. Trago o menino – o mais afobado - pra perto de mim e digo: “Fique ai, vamos ver esse filme que é bom”.   Era “A Fúria dos Sete Homens” (1972), com Lee Van Cleef. Assistimos ao filme inteirinho.

Assim como meu pai herdou dos irmãos, herdei dele o gosto por filmes de faroeste. Mas, sempre me ressenti por que ninguém de casa me acompanhava nessa predileção. Acabava tendo de abrir mão e mudando de canal. Ou, então, assistindo sozinho. Isaac passou o resto sábado e parte do domingo com uma espingarda de brinquedo a caçar bandidos imaginários por toda a casa da Sapiranga.

“Pai, o que é caubói?’
“É mais ou menos como vaqueiro”.
“Pá, Pá, Pá. Eu sou caubói!”

Esse pequeno vaqueiro completa hoje 8 anos. E, sem saber, sintetizou uma vida inteira ao repassar comigo a cena que vivi com meu pai no início desse texto. Amo você caubói!

sábado, 17 de setembro de 2011

Pé no chão

Era fim de noite na redação do jornal. Fechamento. Para quem não conhece a rotina de uma redação, trata-se da hora-inferno. Tudo tem de ser finalizado com pressa e perfeição, duas coisas que tendem a não dar certo. Pior: sempre aparecem imprevistos para acabar de esculhambar o que já beira o caos. Lógico que há edições previsíveis, modorrentas, até. Mas, o comum é a adrenalina.

O sertão, quem acompanha o blog sabe, sempre trago comigo e em mim. Não importa a ocasião nem o lugar.

A noite de 12 de dezembro de 2002 foi um desses fechamentos de edição, digamos, complicado. Quando tudo parecia se encaminhar pra um final a bom termo, eis que o jogo vai para a prorrogação e com um só jogador: eu.

Explico: edição nos seus ‘finalmente’ me chega o editor do jornal com papel contendo um enorme X de caneta sobre o texto impresso. Lacônico: troque isso ai. Era a cabeça da coluna editorial do jornal, que não é assinada e, portanto, tem importância toda especial, pois a empresa assume as informações que ali estão publicadas. Além da abertura da coluna as duas notas seguintes também caíam, já que eram coordenadas com a nota principal 

Lula acabara de ser eleito presidente da República pela primeira vez. O dia seguinte, 13 de dezembro, seria aniversário de 90 de nascimento de Luiz Gonzaga.

Saiu o texto que se segue:









































O eterno Gonzaga


Hoje é dia de pegar a estrada para Exu. Dia de festejar. Seu Luiz faria 90 anos. O caboclo vai encostar os ferros de tardezinha, depois de chiqueirar os bezerros, selar seu melhor animal e partir para a cidade. Vai ouvir Dominginhos entoar as canções imortalizadas pelo velho Gonzaga.

Talvez não saiba, roceiro humilde que é, que aqueles versos, aquelas melodias, aqueles acordes também imortalizam a alma sertaneja (por que sertão é dentro da gente, já dizia Guimarães Rosa).

Vai caboclo. Vai que a noite já vem. Vai homenagear aquele a quem todos chamam de rei. Que se tornou Luiz por inspiração da santa do dia; que cantou o sertão por que viveu o sertão, brotou no sertão; e que, mesmo sendo rei, nunca deixou de fazer reverência a Januário, seu pai.

Festa
E o caboclo vai. Não tendo montaria vai à pé: ...‘‘Mas o pobre vê nas estradas, o orvaio beijando a flô/ vê de perto o galo campina, que quando canta muda de cor/ vai moiando os pés nos riacho, que água fresca nosso Senhor/ vai oiando coisa a grané/ coisa que pra mode vê, o cristão tem que andar a pé’’.

Inspiração
Que a lira de seu Luiz sirva de inspiração para outro pernambucano Luiz. O futuro presidente tem pela frente uma légua tão tirana quanto a enfrentada por Gonzaga. Vencer a fome, a precisão, a dependência da chuva... Botar o sertão num mapa que não seja o da miséria. De onde estiver, seu Luiz estará contente ao ver seu povo feliz.”


Essa história estava na gaveta do esquecimento até que um dia, através de uma rede social, a jornalista Samira de Castro me pediu para escrever alguma coisa sobre seu Luiz. Sem inspiração no dia – que não era mais de fechamentos – fui atrás da coluna redigida há quase 10 anos. E me lembrei de como é importante o cabôco ter os pés no chão. Que é pra mode ver as coisas como elas realmente são.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O indez

Não sem espanto, leio na página eletrônica da Agência Brasil que o “Ministério da Educação (MEC) vai distribuir tablets – computadores pessoais portáteis do tipo prancheta, da espessura de um livro – a escolas públicas a partir do próximo ano.”


A informação foi dada pelo próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, durante palestra a editores de livros escolares, na 15ª Bienal do Livro. O objetivo, segundo o ministro, é “universalizar o acesso dos alunos à tecnologia”.

Diz mais a notícia: “O ministro disse que o MEC está em processo de transformação. “Precisamos, agora, dar um salto, com os tablets. (...) Em 2012, já haverá uma escala razoável na distribuição de tablets.”  


A novidade veio a lume enquanto travava-se na cidade um debate desencadeado a partir de infeliz campanha publicitária de importante escola particular onde se diz que “tablets substituem livros”. Choveram críticas. Nas mídias sociais, sobretudo, por irônico que pareça. E aquilo me martelou o juízo por dias: “tablets substituem...”


Tive a fortuna de ser filho de professora vocacionada. Mais do que isso: ela sabia o poder do estudo, da leitura. Afinal de contas, o homem deve ser “bem lido e bem corrido” ensina o saber popular, dando importância ao estudo e às viagens.


Um dia me chegou às mãos infantis, da biblioteca do Grupo Escolar Presidente Vargas, um livro. O livro. A criança maravilhou-se! Um alumbramento! Livrinho surrado, capa em desgraça, páginas amareladas pelo tempo. Folhas soltas.


Logo na dedicatória, a primeira epifania:

"À memória dos sete grandes geômetras cristãos ou agnósticos: Descartes, Pascal, Newton, Leibnitz, Euler, Lagrange, Comte, (Allah se compadeça desses infiéis), e à memória do inesquecível matemático, astrônomo e filósofo muçulmano, Buchafar Mohamed Abenmusa Al Kharismi, (Allah o tenha em sua glória!), e também a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças, eu, el-hadj xerife Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan (crente de Allah e de seu santo profeta Maomé), dedico esta desvaliosa página de lenda e fantasia." 

De Bagdá, 19 da Lua de Ramadã de 1321.

Esse livro foi não só o primeiro, mas o mais importante que já li. Ele foi o indez.

E, mais uma vez para o meu espanto e alegria, vejo que ele está, na íntegra, disponível na web: http://www.cdb.br/prof/arquivos/71137_20090316043935.pdf

Não, não é o mesmo livro. Não aquele do grupo escolar e que ia ser descartado por ser de edição anterior à reforma ortográfica de 1971. Aquele está aqui, na minha estante, em lugar privilegiado e com capa dura que mandei fazer na Tipografia Cariri, que não existe mais.

Olhando pra ele, e diante dos tablets da moda, vejo que também adquiri ao longo desses anos todos, uma camada de pátina amarelo-suja, como no poema abaixo. 

Que venham os tablets com seus saltos ministeriais. Que venham os seus sucessores e as ansiadas transformações do MEC... Eu fico por aqui com a minha “desvaliosa página de lenda e fantasia.”

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GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as minhas linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
[pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.

Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[mordente da pátina...
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
(Manuel Bandeira)