Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Cio da terra


Filho de família de agricultores, me escapa forma mais apropriada de homenagear essa gente que vive a terra. Sobretudo, destacar os que tiram o sustento da terra seca do Sertão. Por isso tomo emprestada esta canção nas vozes de Chico e Milton Nascimento. No dia do agricultor, esse homem de mãos calejadas, jeito rude e coração mole, um tributo a João Silvestre, Sebasto, Zé Lulu, Simeão, César, Damião, Joaquim, Valdemar... e muitos outros que tiveram ou ainda têm instilado em sangue a magia de afagar terra e, conhecendo a propícia estação, de fecundar o chão.  

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cara de cearense

Cresci ouvindo histórias de familiares, próximos ou distantes, que em busca de vida melhor, emigraram para o Sul e para o Sudeste. Uns foram escapar no Paraná. Outros, no Rio de Janeiro. A maioria, em São Paulo. Teve até uma tia do meu pai que fez fortuna em Sampa como dona de salão de beleza de bacanas, nos Jardins, região nobre da paulicéia. Contudo, a maioria apenas remediou-se, escapando das agruras da vida na roça.  

Vi a recente polêmica causada pela senhora que, pensando xingar um crítico de cinema, disse que o rapaz tinha “cara de cearense”. Fiquei intrigado. Fui atrás das opiniões e daquilo que costumamos chamar de “repercussão na web”. Tem opinião pra todo gosto. E pra todo mau gosto também. Umas inteligentes, outras burras, muitas grosseiras. Tenho cara de cearense. E daí?

-x-x-x-x-

Peço socorro a Darcy Ribeiro, na sua tentativa apaixonada de “tornar compreensível” o Povo Brasileiro: “Foi desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos. Somos, em consequência, um povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor.”

Segue o mestre Darcy:  “Novo (o povo brasileiro) porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. (...)Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros. (os grifos são meus)

-x-x-x-x-x-x
  
Pois bem. Voltando aos meus velhos parentes emigrados, lembro a história contada pelos mais velhos, a título de anedota:

Cearense recém-chegado a São Paulo, matuto como o quê, não se deu com a privada. Foi procurar, na venda do bairro, um bom e velho penico para se remediar. Afinal de contas aquela borda fria de louça empatava qualquer serviço.  

Encabulado, chegou sem saber como falar com o senhor de finos modos do outro lado do balcão. Diante da dificuldade, chamou o sujeito a um canto e falou-lhe ao ouvido. O vendedor, pra tirar um sarro do cabeça-chata, falou a plenos pulmões, a fim de que todos os presentes ouvissem: “Traz um cearense aqui pro paraíba”.

O matuto ficou sem graça, enquanto os ‘sulistas’ riam e diziam pilhérias. Ao sair, passando pelo balconista que ria junto dos fregueses, disse, batendo no fundo do penico: “Esse cabe uns quatro paulista gordo.”

Darcy Ribeiro escreveu uma bela obra tentando nos desvendar a alma. Mas, essa coisa de INvolução tem produzido uma gente cada vez mais diferenciada. Diferenciada como aqueles quatro que o paraíba depositou no vaso de ágata.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Seu Teó

Preto e surdo, seu Téo andava sempre à pé, tangendo um jumento, com uma foice no ombro e um cigarro de palha no bico. No lombo do jegue, uma carga de lenha, de frutas (abundantes naquele pé-de-serra) ou de capim, alimento do pobre bicho. O filho caçula costumava acompanhá-lo. Era engraçado, pois o menino, um negrinho vivo, de olho grande, sempre alertava: “(Tá) Falando, pai”, quando cruzavam com alguém na estrada. Só então Teó retribuía o cumprimento.

Dentre outros serviços de roça, Teó castrava animais. Era costume entre os moradores daquelas paradas a criação de porcos, galinhas, carneiros e outros pequenos bichos. Depois de cevados, geralmente em datas especiais, viravam banquetes. Para a criação engordar sadia, é costume castrá-la. É aqui que entra Teó.

O bicho a ser castrado era um porco, na verdade, um bacurim. Teó ficou de ir, mas não apareceu para fazer o serviço. Adiou para a semana seguinte, depois mais uma semana e mais uma... As desculpas eram: ‘a Lua’, que não estaria propícia, ‘uma inflamação’ que apareceu não sei em que parte do seu corpo, isso, aquilo.

Minha mãe passou a aperrear o juízo do meu pai: “O tempo está correndo, esse bicho tá crescendo. É já que passa da hora de fazer esse serviço. Vai atrás de outra pessoa....” O velho – que, faça-se justiça ainda não era velho naquele tempo – aporrinhou-se. Amolou uma faca e partiu com tudo em direção ao chiqueiro.

Antes, passou por um fogareiro velho, que só era usado em ocasiões especiais, e pegou um punhado de cinza. E me chamou: “Venha me ajudar”. Tremi. No chiqueiro, pegou o bicho pela orelha, atirou ao chão e disse: “Segure”. Em instantes estava o porquinho sem os seus bagos. A cinza é usada para prevenir inflamações.

Muitos anos se passaram. Arribei do Cariri. Andei pelo Planalto Central para depois me fixar em Fortaleza. Jornalista, me vejo atualmente obrigado, por dever de ofício, a acompanhar de perto a tragédia da violência e as suas consequências para a sociedade. Na base de tudo – ou de quase tudo – a droga, o crack.

Numa viagem de férias ao sertão, soube que o negrinho de olho vivo, filho de seu Teó, entrara para o crime. Usuário de drogas, virou ladrão. Seguiu os passos de Cézar, que era o filho mais velho do capador de bichos. Cézar foi meu contemporâneo e parceiro de partidas de futebol em campos de terra batida. Foi no tempo da ingenuidade. Morreu no crime, à bala. Do negrinho, de quem nunca nem sequer soube o nome, não tive mais notícias.

Teó, diante da desgraça que se abateu sobre seus meninos, piorou do diabetes. Não sei se ainda é vivo para além da minha lembrança.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Prosa romeira

O cariri está em Festa. Centenário de Juazeiro. Romeiro pra todo lado. Uma beleza. Um dia desses era um arrabalde do Crato. Hoje, uma das mais importantes cidades do Nordeste. Obra do santo, milagres de um povo. 


A propósito do santo popular do Juazeiro (na imagem ai ao lado com o dr. Floro Bartolomeu), lembro de uma história que envolve Ivanildo Silvestre, primo de minha mãe e uma figura dotada de humor fora do comum. Em visita à Capela do Socorro, onde está enterrado o vigário, teria acontecido o seguinte diálogo com uma romeira: 

Ivanildo: "O Pe. Cicero foi enterrado ai?"

Romeira: "Foi, mas ele num tá ai mais não. Tá em Roma, com os santos e com o Papa".

Ivanildo: "Isso é um padre ou um peba?"


Não é preciso dizer que o primo velho teve de sair à francesa para não ser linchado. E foi gentilmente escoltado pela força policial até a porta de casa, no Crato.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Cristãos novos

Manoel de Castro Filho foi governador do Ceará entre 1982 e 1983. Vice do coronel Virgílio Távora, assumiu o Executivo quando o coronel saiu para o Senado.



Exatamente em 1982 tive meu primeiro contato com a política. Jósio de Alencar Araripe (pai dos Jornalistas Flamínio e Zínia Araripe) e Valmir Farias eram os candidatos do MDB à Prefeitura do Crato. Acredito que contra Ariovaldo Carvalho, capitão do Exército, hoje na reserva. Naquela época só existiam dois partidos políticos: Aliança Renovadora Nacional -Arena (nas versões 1 e 2) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).



Lembro de um comício cujo palanque era um caminhão. Não havia nem uma centena de pessoas a ouvir os discursos (incluídos os bebinhos). Foi defronte à bodega de João Nogueira, também aguerrido oposicionista do Bairro Pinto Madeira (Caixa Dágua). Era João quem guardava as facas dos matutos nos dias em que havia festa no salão da Igreja de São Sebastião, que ficava bem em frente à bodega.



Voltando à política: o lema da campanha da oposição (MDB) dava uma pista da dificuldade de vencer o poderoso esquema governista: “Vai dar Zebra”, numa alusão à zebrinha da Loteria. Fato é que não deu zebra nenhuma, e os “comunistas”, perdemos. Lembra Flamínio: “Os panfletos distribuídos de madrugada nas casas na eleição no Crato diziam que os ‘comunistas’ comiam criancinhas. No máximo elegiam um vereador.”



Anos após o comício, ouvi o então candidato Jósio Araripe lastimar: "Um dia desses eu estava sozinho e cima de um caminhão. Ontem, não tinha lugar pra mim no palanque, lotado de cristãos novos." Com a morte de Tancredo Neves, José Sarney havia assumido a presidência, agora pelo PMDB. E, com ele, uma leva de ‘cristãos novos’.
Na foto acima estou eu a discursar na formatura do ABC de uma turma que não era a minha. É que o governador Manoel de Castro, que não tinha muito o que fazer a não ser empregar parentes no governo, estava presente à solenidade e eu, segundo Madre Feitosa, diretora da escola, era “desenvolto em leitura”.
Agora estamos em 2011, distantes daqueles tempos de ditadura militar, de Lei Falcão e de medo, muito medo. Vivemos o chamado estado democrático de direito há mais de duas décadas. As instituições funcionam e, segundo dizem os especialistas nas folhas de jornais, se aperfeiçoam a cada dia.
O menino desenvolto em leitura hoje escreve uma linha ou outra, aqui e acolá. E ainda espera a zebra que nunca houve, enquanto observa novas e sucessivas ondas de cristãos novos sobre os palanques de sempre.



sexta-feira, 1 de julho de 2011

Lugar encantado

Em recente passagem pelo Crato acabei por me dar conta dos muitos lugares da minha infância que desapareceram. Isso mesmo: sumiram na bruma do tempo. Seja por ação de um administrador desastrado, seja pelo pesar dos anos a corroer a memória das gentes e a cobrir de pó as marcas antigas que caracterizavam o lugar. Sumiram.

Um dia deu na veneta de um prefeito alargar uma rua. Em pouco tempo foi abaixo o mais belo conjunto de fachadas da cidade, com seus azulejos portugueses, fachadas coloniais e muito da história do lugar. O Bar do Alagoano, ali na esquina da Praça da Sé, foi junto. Antes disso, muito antes, a casa de dona Bárbara de Alencar dera lugar a prédio público da coletoria estadual.

O antiquíssimo mercado Redondo virou prefeitura. O outro mercado, da rua Formosa (que virou Santos Dumont) foi demolido para dar lugar ao aglomerado de barracas de papelão e plástico a que se chama “Camelódromo”. Um casarão secular saiu de cena para que o Banco do Nordeste, com sua fachada envidraçada, surgisse na ribalta da modernidade. São muitos os exemplos.

Mas há casos em que os lugares, em vez de sumirem, se encantaram. É o caso da Ponte das Piabas, no Rio Granjeiro. Da ladeira do Castelo (a ‘descida na subida’ do Granjeiro. Está lá até hoje, mas saberão seus caminheiros o seu nome original?). São lugares simplesmente sublimados no tempo do coração da gente. O riacho Jacó - afluente do Batateiras que corre pro Salgado que faz o Jaguaribe grande – está lá. Eu sei disso. É o rio da minha aldeia.

O Jacó, apesar de muito agredido por anos a fio, permanece na extrema do sítio de minha família com as terras do engenho de Antuérpio de Melo (esse também um lugar que desapareceu, com canavial e tudo). Nesse tempo de estio, estará seco o Jacó. Mas, na primeira chuva, voltará a descer com estrondo, com sua água barrenta a escorrer entre as pedras. É no encantamento desse lugar que eu confio.