Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Seu Teó

Preto e surdo, seu Téo andava sempre à pé, tangendo um jumento, com uma foice no ombro e um cigarro de palha no bico. No lombo do jegue, uma carga de lenha, de frutas (abundantes naquele pé-de-serra) ou de capim, alimento do pobre bicho. O filho caçula costumava acompanhá-lo. Era engraçado, pois o menino, um negrinho vivo, de olho grande, sempre alertava: “(Tá) Falando, pai”, quando cruzavam com alguém na estrada. Só então Teó retribuía o cumprimento.

Dentre outros serviços de roça, Teó castrava animais. Era costume entre os moradores daquelas paradas a criação de porcos, galinhas, carneiros e outros pequenos bichos. Depois de cevados, geralmente em datas especiais, viravam banquetes. Para a criação engordar sadia, é costume castrá-la. É aqui que entra Teó.

O bicho a ser castrado era um porco, na verdade, um bacurim. Teó ficou de ir, mas não apareceu para fazer o serviço. Adiou para a semana seguinte, depois mais uma semana e mais uma... As desculpas eram: ‘a Lua’, que não estaria propícia, ‘uma inflamação’ que apareceu não sei em que parte do seu corpo, isso, aquilo.

Minha mãe passou a aperrear o juízo do meu pai: “O tempo está correndo, esse bicho tá crescendo. É já que passa da hora de fazer esse serviço. Vai atrás de outra pessoa....” O velho – que, faça-se justiça ainda não era velho naquele tempo – aporrinhou-se. Amolou uma faca e partiu com tudo em direção ao chiqueiro.

Antes, passou por um fogareiro velho, que só era usado em ocasiões especiais, e pegou um punhado de cinza. E me chamou: “Venha me ajudar”. Tremi. No chiqueiro, pegou o bicho pela orelha, atirou ao chão e disse: “Segure”. Em instantes estava o porquinho sem os seus bagos. A cinza é usada para prevenir inflamações.

Muitos anos se passaram. Arribei do Cariri. Andei pelo Planalto Central para depois me fixar em Fortaleza. Jornalista, me vejo atualmente obrigado, por dever de ofício, a acompanhar de perto a tragédia da violência e as suas consequências para a sociedade. Na base de tudo – ou de quase tudo – a droga, o crack.

Numa viagem de férias ao sertão, soube que o negrinho de olho vivo, filho de seu Teó, entrara para o crime. Usuário de drogas, virou ladrão. Seguiu os passos de Cézar, que era o filho mais velho do capador de bichos. Cézar foi meu contemporâneo e parceiro de partidas de futebol em campos de terra batida. Foi no tempo da ingenuidade. Morreu no crime, à bala. Do negrinho, de quem nunca nem sequer soube o nome, não tive mais notícias.

Teó, diante da desgraça que se abateu sobre seus meninos, piorou do diabetes. Não sei se ainda é vivo para além da minha lembrança.

Um comentário:

  1. Coisa triste, Henrique! Tanta pena do seu Téo. Tanta pena da gente que está vivendo nessa violência toda, meio que impotente. Tanta pena disso tudo que a gente quase endurece: "quase". Beijos

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