Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O pregão

Sempre que falo da minha infância falo de um menino beradeiro. É fato que a maior parte desse tempo vivi no sítio. As viagens à cidade eram diárias, para a escola. Mas, fins de semana e férias sempre foram de isolamento, no mato. Ademais, o tempo de ócio, mesmo em períodos letivos, era passado na roça mesmo. Mas, houve outro tempo, urbano. Curto, porém intenso.

A rigor, boa parte da minha primeira infância foi na rua. Melhor, na cidade. Primeiro no popular Alto do Seminário. Depois ali perto de onde hoje funciona a Estação Cultural, antiga estação da RFFSA. Mas, é de um terceiro endereço que me vem alguma lembrança dos meus tempos urbanos: Rua Sagrada Família.

Fica no sopé da barreira do Alto do Seminário, por trás da antiga garagem da Prefeitura do Crato. As casas do lado do poente, quase todas de calçadas muito altas, tinham seus quintais limitados pela enorme barreira. Alguns barracos eram edificados nalgum pequeno platô paredão acima. Já as moradias do lado nascente tinham davam seus quintais para a margem esquerda do Rio Granjeiro. Um dia pulei de uma calçada no meio da rua e quase perdi o dedão do pé esquerdo pra um caco de vidro.

Outra vez cheguei em casa pela mão de um vizinho bondoso. Ele me apanhara à margem do Rio Granjeiro, que amanhecera de enchente. O problema é que, menino pequeno, estava eu do lado de dentro da amurada, no batente que se formava no parapeito. Uma queda para dentro rio e tchau. Minha mãe rezou uma dezena de terços.

É desse tempo também a lembrança doce dos pregões: “Oooolhaaaa Cocaaada”, gritava o preto com o tabuleiro na cabeça. “Eeeeou o picolé”, convocava o vendedor que batia no isopor. Foi há muito tempo. O leiteiro passava no lombo do burro com seus latões. Esse não apregoava, apenas alertava na porta da freguesia certa: “Lêeech!”. E o doceiro: "Iôu o quebra-quêêêxo".

De todos eles, o que mais me animava era o vendedor de pães. Passava de tarde, na hora da merenda, com um tabuleiro comprido cheio de pãezinhos sovados, moreninhos, macios e de formato peculiar. E gritava, para excitação geral: “Ói o peito de moça!”

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Salve, Jorge

O sertanejo é religioso. Católico. Contudo, nos sertões adentro não se dá muito prestígio a São Jorge. A não ser quando se aponta a imagem do santo na Lua, com sua lança a fustigar o dragão. São José, Maria nas suas várias versões, São Sebastião, Santo Antônio, São Francisco, dentre outros têm prestígio infinitamente maior do que o santo guerreiro. O que dizer de Santana, a mãe de Maria, que no Ceará dá nome a duas cidades, uma no Norte, outra no sul do Estado?

Antônio Silvestre arribou do Sertão nos anos 50. Foi pro Rio de Janeiro que nem na canção de João do Vale:  “Mas plantar prá dividir// Não faço mais isso, não.//Eu sou um pobre caboclo,//Ganho a vida na enxada.//O que eu colho é dividido//Com quem não planta nada.//Se assim continuar//vou deixar o//meu sertão,//mesmos os olhos cheios d'água//e com dor no coração.//Vou pro Rio carregar massas//pros pedreiro em construção.

E foi. Lá, com o peito de desterrado, construiu uma bela família. Até que um dia resolveu visitar sua gente, seu torrão. Guardando os ensinamentos e fé católica que herdou dos pais, comprou presentes. Dentre eles, uma bela imagem de São Jorge, padroeiro do capital dos cariocas. Rumou pra casa satisfeito que só mesmo um indultado. Mesmo sabendo que as mesmas estradas que o conduziam ao Sertão o levariam de volta ao degredo.

Presente pra um, presente pra outro. Abraço, choro. A alegria contida como a água nas cabaças (com a licença do poeta H. Dobal).  A imagem de São Jorge foi solenemente entregue na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira da aldeia em que nascera. Antônio estava feliz. Unia ali a atual devoção com fé atávica.

Estamos agora no ano de 2010. Minha mãe, em visita a Fortaleza descobre que minha esposa Verônica é fã (acho que fã aqui é mais apropriado do que devota) de São Jorge. Ao ponto de querer botar o nome do santo em um dos nossos filhos. Não deu certo, mas a simpatia pelo guerreiro ficou. Na mesma hora surgiu a história do São Jorge trazido por Antônio do Rio há 50 anos e que estava esquecido numa gaveta qualquer. “Já que ninguém prestigia o santo, ele agora é seu”, prometeu minha velha mãe. E é mesmo.

Hoje a imagem (foto) está no Crato, à espera de um santeiro que irá recuperá-la em Juazeiro do Norte, que é terra de santeiros e de outros artistas geniais. Em breve, São Jorge será entronizado em lugar de destaque na casa do Reino da Sapiranga. Haverá festa. Talvez com direito a bênção e aguardente. E, assim que terminar, ligo pra Antônio Silvestre pra dizer a ele que sua fé está, enfim, no lugar em que merece.


segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Pastor Amoroso

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade
no peito.
 
Alberto Caeiro                                                                                                                       




Hoje é 123º aniversário de um gênio. Por isso compartilho este poema, que é muito belo e diz um pouco de mim, também ovelha tresmalhada no meio do mundo. Hoje tenho três cordeiros para apascentar. Não só de pão, mas também de carinho e proteção (e uma palmada ou outra, quando precisar).

    

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A grande viagem

O cartunista Ziraldo costuma dizer que “ler é mais importante do que estudar”. Tenho pleno acordo com isso. Sempre tive dificuldade com a educação formal. Acredito que tinha alguma razão quando, nas manhãs quentes de novembro, no Colégio Madre Ana Couto, questionava, no mais íntimo do meu ser, a razão estar ali, em sala de aula, tentando enfiar na cachola, fórmulas de química e de física, teoremas e equações. Podia estar lendo um Dostoiévski, por exemplo. Ou, quem sabe, ouvindo um velho matuto contar histórias ainda mais fantásticas do que as de Garcia Marquez.


Era eu muito jovem e chato como costumam ser os muitos jovens e chatos irrequietos. Esse meu sentimento foi reformado em parte. Em parte. Continuo achando a leitura mais importante. Continuo de ouvidos atentos às histórias do povo. Atento ao que, na Academia, chamam de ‘oralidade’. Pois bem. Muito do que encontrei nos livros, eu já havia vivenciado no dia-a-dia do sertão nos tempos de infância e juventude.

Disse em texto anterior como conheci Patativa, os Aniceto, Espedito Seleiro, Pedro Bandeira (cantador), Chiquim Eugênio (reisado). Foi na rua, na feira do Crato. Depois, muito depois, ao ver um deles na prateleira de uma livraria ou biblioteca, na capa de uma revista, em horário nobre na tevê, eu era (sou) tomado por um orgulho tímido, que curto sozinho, pleno de felicidade. Dessa forma, leitura e saber popular se misturaram em mim.

Luís da Câmara Cascudo nos legou obras geniais. Dentre elas, a tradução de “Travels in Brazil”. Trata-se de livro do anglo-português Henry koster publicado em Londres, em 1816. Koster passou 11 anos percorrendo o sertão nordestino a partir de 1809. Depois enfeixou suas impressões em livro.  “Antes dele, nenhum estrangeiro atravessara o sertão do Nordeste, do recife a Fortaleza, em época de seca, em comboio (...) comendo carne assada, dormindo embaixo de árvores...”, descreve cascudo.

Repare no que vai dizer o viajante sobre os nossos antepassados nordestinos: “Os sertanejos são muito ciumentos e há 10 vezes mais mortes por este motivo do que por qualquer outro”. Machistas desde a origem, portanto. Certamente estará ai uma das mais profundas raízes dessa tragédia chamada machismo.

Segue Koster: “O roubo é pouco conhecido. A terra, nos anos bons, é toda fértil, impossibilitando a necessidade que justificaria a tentação criminosa, e nas más colheitas todos sofrem igualmente a penúria. (...) Os sertanejos são corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros. Entretanto, em negócio de gado, ou qualquer outro, o caráter muda. Procurarão enganar-vos, olhando o sucesso como prova de habilidade, digna de elogio.”

Impossível não me emocionar cada vez que leio isso. Conheço essa gente. Muito terá mudado, é fato. Sobretudo no aspecto da violência, que deixou de ser meramente passional. Mas, conheço essa gente. Profundamente.

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Ouvi esta história dos mais antigos: “Sujeito tentava vender um belo burro cardão a fazendeiro importante e temido no lugar. Animal belíssimo. Era tardizinha, quase noite. Não se via defeito no bicho. Contudo, o ladino vendedor advertia: ‘Não faço negócios escusos. Repare no defeito, que está à vista.’ O coronel, encantado com o porte e aparência saudável do bicho, que além do mais era mansinho, nem sequer prestou atenção á advertência do vendedor. Comprou e pagou à vista. Pois não é que burro era cego!!”

Duzentos anos depois, nem o machismo nem a sabedoria (astúcia, segundo Suassuna) deixaram a nossa gente. Também continuamos corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros.

E eu tenho cada vez mais a certeza de que a leitura pode proporcionar grandes viagens, emocionantes reencontros.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Nas horas de Deus, amém III


Para além da religião formal católica e das festas populares profanas, o Cariri tem lá seus mistérios, suas transcendências. Seu sobrenatural.  Meu pai, homem de fé e doutrina, é avesso a crendices. Rejeita tudo que não estiver em acordo com os evangelhos. Já minha mãe, em que pese não abandonar a reza formal, acredita em ‘forças inexplicáveis’.

Certa vez, minha irmã caçula, que é 12 anos mais nova do que eu, estava machucada. Em decorrência de uma queda, chorava muito, incomodada por dores no punho. Médico não dera jeito. Radiografia mostrou que não era ‘nada demais’. Mas, passado o efeito do analgésico, lá estava a criança a chorar de novo, com dores. Devia ter dois anos, no máximo.

Meio na surdina, já que meu pai não queria acordo como essas coisas, minha mãe me elege como cúmplice. Vamos juntos levar a pequena para uma rezadeira, que iria ‘costurar’ a contusão. Trata-se de ritual para curar machucados, torções, ‘carne triada’ e ‘junta desmentida’.

Somos recebidos no terreiro da casa simples, de taipa. A velha tem a cabeça coberta por um pano branco e um rosário de contas no pescoço. De posse de uma folha verde, agulha e linha grossa, começa o ritual. A senhora está sentada vis-à-vis com a minha mãe, que segura a filha ao colo. Eu observo de esguelha, meio sem entender, meio sem acreditar.

A velha diz e minha repete por três vezes enquanto costura na folha, como a tecer bordado mágico: “O que eu coso?” “Carne triada, osso, nervo torto, aqui mesmo eu coso...São Frutuoso, com os poderes de Deus as bênçãos da Virgem Maria.”

Em seguida benzedeira manda ofertar a São Frutuoso, Nossa Senhora e a Jesus Cristo, três Padres-Nosso, três Aves-Maria e três Glória ao Pai. Durante o ritual, a criança dormiu. E, garante a minha mãe, ao acordar, não reclamou mais do machucado.

Eu me lembrava claramente do episódio, mas não da reza em si. Em recente passagem pelo Cariri, uma tia me relembrou a reza. Dessa forma, a gente simples do Sertão vai cosendo histórias, sem deixar as tradições nem as crenças caírem no abandono. Com fé em São Frutuoso!  Com os poderes de Deus, e com as bênçãos da Virgem Maria. Viva a cultura popular.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Nas horas de Deus, amém II

A religião católica não me legou apenas o prazer da leitura, como disse em texto anterior. As festas religiosas no sertão estão sempre (graças a Deus) casadas com festas profanas. Exemplo máximo é a festa de Santo Antônio, padroeiro da aprazível Barbalha. A festa popular é tão forte, que setores da imprensa cearense acharam por bem chamá-la de Festa do Pau da Bandeira. Nada disso. O corte e o carregamento do pau que servirá de mastro para a bandeira do santo é parte da manifestação profana, regada a muita cachaça. Mas, apenas parte.

A festa de Nossa da Penha, padroeira do Crato sempre foi menor do que as homenagens ao santo de Barbalha, mas não menos animadas. Meu pai, muito ligado à igreja, tomava conta do bar (da paróquia) durante a quermesse. Eu adorava os leilões. Ficava ‘peruando’, sem entender como aquelas pessoas gastavam tanto dinheiro para arrematar prendas tão prosaicas.  Um dia, dois comerciantes importantes da cidade disputaram - centavo a centavo - uma galinha assada. Quando a contenda acabou, o leiloeiro saiu-se com essa: “Eita que galinha desse preço só quem come é Luiz Manoel e galo!”. Até a Virgem da Penha corou.

No Cariri tem ainda festa religiosa que é pouco conhecida nas demais regiões do Estado. Trata-se da “Renovação”. Luiz Gonzaga diz numa canção que a festa acontece por que ‘o santo se vence’. É assim: quando o sujeito se muda para a casa nova, após o casamento, entroniza o Coração de Jesus geralmente numa parede da sala. A partir daí, sempre naquela data, a cada ano, é feita uma celebração na qual se renovam os votos de fé. Após a reza, é servido jantar. Os homens geralmente ficam pelos terreiros, bebericando e falando alto.

As pessoas de posses fazem festas de renovação concorridas. Alguns matam um boi cevado, carneiros, galinhas... Os menos aquinhoados têm festa modesta e mais pura. Recentemente fiquei sabendo que o bispo do Crato, o italiano Dom Fernando Panico, que foi morar perto da casa de meus pais, abandonando o imponente Palácio Episcopal, faz Renovação todos os anos. Pois não é que até o santo do bispo se vence!