Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Televisão

A Copa do Mundo da Argentina (ou seria a fraude do Plata?) marcou a chegada da primeira TV colorida na minha casa. Lembro da emoção diante da tela verdinha dos campos argentinos. Era uma National (como essa ai do lado), ainda com móvel de madeira e seletor. Não tinha controle remoto. Mas era tudo que havia de bom. Até um passado recente ainda estava na casa de meus pais, embora imprestável. Herdei essa mesma mania de guardar cacarecos.

Antes dela foram todas em P&B. Grandes, algumas com pés. Teve uma que era montada dentro de um móvel. A agonia era grande toda tarde. É que a imagem, no sítio, no sopé da Chapada do Araripe, não ajudava. Meses de julho e agosto, então, era uma desgraça. O vento forte fazia o que queria com a antena e lá se ia embora a imagem.


Era viciado no seriado Tarzan. Passava à tarde na extinta Tupi. O Canal 2, dos Diários Associados. Dia desses, a desgraça da imagem fugiu. Ficou o áudio apenas. E ruim! Quase enlouqueço girando o seletor à procura de sintonia. A vista embaçou. Não vi mais nada e como faz toda criança desconsolada, comecei a chorar.
 

No início da noite ainda estava mal. Perdera o episódio, praguejava com a maldita TV. Ao chegar do trabalho meu pai foi ver se tinha conserto. Ligou o aparelho. Eu ali, do lado, ansioso. A expectativa agora já era para o dia seguinte. Ele examinou um instante só e achou o “defeito”: em vez de canal 2, estava no canal 3. Daí a falta de imagem e o áudio ruim.


E o velho aparelho de TV me deu uma lição: afobação não resolve problema.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Casa Grande

Orgulho. Não tem outra palavra para definir o que encontrei em Nova Olinda ao visitar, há cerca de 10 anos, a Fundação Casa Grande. A entidade ainda não existia quando arribei do Cariri, faz cerca de duas décadas e meia. Conheci o trabalho de Rosiane e Alemberg primeiro através dos jornais, mas de perto é muito mais bacana.

Crianças que antes estavam condenadas a reproduzir a desigualdade de que são vítimas, passaram, na Casa Grande, a protagonistas das suas histórias. A banda "Os Cabinha" tocando Pink Floyd trouxe lágrimas aos meus olhos.

Equidade. Foi esse o paradigma quebrado na Casa Grande. Enquanto o filho do brasileiro pobre, preto e analfabeto não tiver condições pelo menos comparáveis às do filho do branco classe média (de estudo, acesso a bens culturais e saúde, principalmente), a faxina que a dona Dilma pretende fazer será apenas bolha de sabão.

Casa Grande rompe essa lógica: filho de vaqueiro pode ser sociólogo, músico, escritor, jornalista... vaqueiro também.

Nova Olina abriga ainda hoje muitos dos meus familiares. A minha avó, Maria Silvestre, nasceu ali, no Sítio Grossos. Lá também viveu tia Rosa que morreu de velha e tinha olhos de pavão (pelejaram para arranjar uma doença pra ela, mas não conseguiram).

Maria e Rosa conheceram outro tempo, ainda mais distante da equidade ainda tão ansiada nos dias de hoje. Tempo de casas grandes, mas também de senzalas.

Na foto acima, estamos na porta da Casa Grande eu, Verônica e João, nosso filho mais velho. Muita recordação e, repito, orgulho.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A metáfora do dedinho

Maria Isaura Araújo tem oito anos e não conhece Isaac, que fará oito daqui a 40 dias.

Isaura é uma caririense do Crato que teve a fortuna de nascer no berço de ouro da cultura popular, filha de Cacá Araújo, a quem conheci molecando nas ruas da cidade após as aulas. Cacá cresceu. Não só naquilo que mede a régua ou a balança. Cresceu e virou grande: motivador-incentivador-promotor-agitador-realizador-fazedor da cultura popular.

Sua pequena Isaura lhe segue os passos. Linda! Talentosa.

Ontem, Cacá publicou, em rede social, trabalho de Isaura. E, para meu orgulho e angústia, marcou meu nome na imagem, para ter a certeza de que eu não deixaria de vê-la. A imagem é essa ai acima. Mimosa como a pequena “Tarsila de Araújo”.  Daí a minha pabulagem: de ter sido lembrado nessa hora em que o pai é mais orgulhoso!

A angústia será mais entendida no texto logo abaixo neste blog. Melhor, explico logo. Na sequência da imagem (e do belo texto que a acompanha no Facebook) há um comentário de Cacá: “Essa pintura foi feita com o dedinho, viu?”.

Todos os dias, por pelo menos quatro vezes, faz 15 dias, Isaac tem de furar um dedinho para verificar a taxa de açúcar do sangue: diabetes.

Para meu consolo, no exato momento em que escrevo, coração miúdo, ouço do quarto ao lado meu filho mais velho exclamar: “Isaac, por que você é assim, tão FIOTA?”

Viva Isaurinha que tem oito anos e pinta com os dedinhos. Viva João e viva Miguel, que também são brincantes nessa história. E viva Isaac, que tem sete anos, fura os dedinhos, e é fiota como o Cassimiro Coco!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Café amargo

Não sou cinéfilo. Nunca fui. Mas sei apreciar um bom filme. Nada de dar nome a atores menos conhecidos, diretores que não sejam os mais badalados ou, mais ainda, a coadjuvantes e técnicas cinematográficas. Mas sei reconhecer um bom filme. Pra isso, basta uma dose mínima de sensibilidade e algum bom gosto.

Minha curva de crescimento é inversamente proporcional à curva do cinema nacional. A cidade em que nasci e cresci perdeu as três salas de exibição quando eu era ainda um garoto. Antes de fechar, ficou apenas pornografia, nacional ou ianque. A exceção eram os filmes de Renato Aragão e companhia. Outra, mas ai já foi um golpe de sorte, foi o filme “O Beijo da Mulher Aranha”, que assisti no Cassino Sul Americano, no Crato.

Quando arribei de casa em fins de 1986 a coisa não havia mudado. Contudo, Brasília tem no cinema uma forte opção de lazer. Foi lá que vi um dos filmes mais incríveis da minha vida de poucos filmes incríveis (genial mesmo é a vida real, sem manipulações, releituras ou técnicas de luz). Trata-se de Bagdá Café, um título alemão de 1987.

A bem da verdade, sem auxílio do oráculo Google não saberia citar o nome nem de elenco nem de diretores. Exceção para o canastrão Jack Palace, que está ótimo no papel de um pintor (uma metáfora do artista que enxerga luz onde os demais só vêm desgraças). O filme: http://en.wikipedia.org/wiki/Bagdad_Caf%C3%A9

Lembrarei, isso sim, para sempre, da força dramática do encontro de duas mulheres pertencentes a dois mundos diferentes e com dores tão iguais. Uma alemã largada pelo marido no meio Deserto do Mojave chega a um posto/hotel de beira de estrada e encontra uma negra sofrida que expulsara o marido cabra-ruim de casa. O choque as transforma.  

 E transforma também o lugar, que ganha cores, luzes e sons. Ganha vida. Então chega a “imigração” e, num anticlímax, expulsa a alemã gordinha de volta ao seu país. O lugar volta a decair. Ao ponto de um dia um caminhoneiro perguntar: “Onde está a mágica?” E ouvir da preta a seguinte resposta: “A mágica acabou. ” (A mala da alemã tinha sido trocada na viagem. Ela ‘ganhou de presente’  um kit de mágica e passou a usá-lo para animar o lugar).

No último sábado, quando soube do diabetes do meu filho caçula, me senti assim: com a sensação de que a mágica acabara.

Mas a alemã voltou. Desta vez com visto e toda a papelada necessária para viver na América. A mágica então ressurgiu.

Desde o sábado, Isaac passou a nos dar, diariamente, pequenas lições magia. Da mágica de ser feliz adoçando nossas vidas mesmo vivendo sem doce.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Chuva do caju

“Quando chega o verão é um desassossego por dentro do coração...”

Agosto chegou com seus sortilégios. Trouxe também a chuva do caju e a lembrança do tempo de infância, das brincadeiras de castanha. Quem nunca jogou castanha não sabe o que é bom. Há muita pureza, em que pese o valor monetário envolvido.

Castanha é um produto valioso na roça. Vários armazéns compram as safras de pequenos produtores para revender às grande indústrias. Na verdade, são atravessadores. A meninada do meu tempo costumava juntar castanhas para, ao final da safra, vender nesses depósitos e apurar algum trocado.

Antes, porém, a castanha armazenada virava objeto de desejo e brinquedo. A brincadeira remonta a tempos imemoriais. J. de Figueiredo Filho descreve o jogo e suas variantes no seu brilhante livro “Folguedos Infantis Caririenses”, recentemente reeditado pela Secretaria de Cultura do Estado. Nesse endereço há uma boa descrição da brincadeira: http://migre.me/5oM8G.

Quando a castanha torrada é aquela que a gente cata ou ganha no jogo, juro, ela é mais gostosa.  

Hoje, na cidade grande, não se joga mais castanha. Nem pião, nem futebol na rua ou no campo de terra batida. E, pra meu desassossego, também não se celebra mais a chuva do caju.