Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Rainha do Brasil

O sábio João Silvestre, meu avô materno, dizia que “farinha é um dicumê abençoado: rende o pouco, esfria o quente e endurece o mole.” E é mesmo. Além de ser uma quase unanimidade entre os nordestinos, sempre foi, ao lado do consórcio gado/algodão, um produto que representava algum excedente nos “anos bons” (de inverno farto). Era o saco de farinha, de algodão, ou uma rês cevada que garantiam a compra de uma máquina de costura, de um “corte” para uma roupa nova (geralmente do mesmo pano para todos os meninos) ou, mais recentemente, de uma bicicleta ou de uma passagem para São Paulo.

A chef de cozinha Ana Luiza Trajano, paulista com ascendência mineira e cearense, vai mais longe e lembra que não é o arroz com feijão que une o Brasil: "a verdade no País inteiro é a mandioca". Câmara Cascudo chama a farinha  de “Rainha do Brasil – basalto fundamental na alimentação brasileira”. O naturalista austríaco Von Martius, que esteve em missão no Brasil de 1817 a 1822, escreveu que, “com um saquinho de farinha, o brasileiro vive oito dias e, nas matas e pântanos, cansaria o mais forte soldado nórdico e em guerrilha o venceria".

A farinhada é uma festa no sertão. Homens, mulheres e crianças trabalham na fabricação da farinha. Para todos há ocupação. Em certos pontos do País a farinhada é notável acontecimento; acorrem pessoas de diferentes sítios, há matança de rezes para alimentação dos que nela estão colaborando. Os lavradores vizinhos agem de modo a que não coincidam as épocas de farinhada, para poderem contar com o maior auxílio possível.

A negra Pastora raspava mandioca nas farinhadas de João Silvestre, meu avô. Também nas de outros pequenos (ou não tão pequenos) proprietários de terra no sopé da Chapada do Araripe. Vivia só. Os filhos cresceram e tresmalharam-se. Trazia sempre um pano amarrado na cabeça, cobrindo o pouco cabelo espicaçado. Tinha olhos opacos como os de um peixe passado. De cócoras para descascar mandioca, viam-se-lhe as canelas descarnadas e cinzentas.

Nas festas de farinhada Pastora bebericava umas e outras e ficava, como costuma dizer minha mãe, desbocada. Começava, então, dizer nomes feios e impropérios capazes de fazer corar um frade de pedra. Um dia acharam pastora boiando num açudeco onde costumava nadar ao amanhecer. As anáguas brancas lembravam um punhado de farinha a dar contornos à pele escura e fria. Extinguia-se ali a anônima Pastora. A preta desvalida que raspava mandioca nas farinhadas para sobreviver. 
Acho que Pastora foi a verdadeira Rainha do Brasil.