Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A célula comunista

A bodega de seu Tonho tinha poucos recursos. Cachaça, conhaque, rum, campari e cerveja.  Um balcão encardido e prateleiras precárias.  O pé-direito alto, típico das casas antigas, contribuía para arejar o ambiente. Aqui e ali, uma réstia de luz coada pelo telhado ia marcar a passagem lenta das horas nas garrafas emparelhadas. Tinha ainda a conveniência de ficar situada na esquina das ruas Zé Marrocos com Monsenhor Esmeraldo, na esquina oposta à famosa Casa de Glorinha.

Foi seu Tonho quem tirou meu pai da prisão. Na verdade, seu Tonho evitou a prisão dele. A bodega era ponto de encontro de uma “turma de subversivos”. Dentre eles, o médico Raimundo Bezerra (que depois seria eleito prefeito do Crato) e Clodomir Ferreira Lima (vizinho e amigo do meu pai). Como meu velho pai morava algumas casas rua acima (na Monsenhor Esmeraldo) não era difícil encontrá-lo no pé do balcão de seu Tonho, tomando um trago após o dia de trabalho.

Os “comunistas” daquele tempo eram todos conhecidos: Valmir Farias, Gilberto e Juvêncio Mariano, Geraldo Formiga, seu Valdomiro (da Loja Asteca) e uma pá de gente do Banco do Brasil. Todos homens de bem. Mestre Elói Teles foi quem padeceu por mais tempo na prisão. Era 1968. Um oficial do Exército chegou à bodega de seu Tonho com uma lista de suspeitos. Nela estava o nome Djalma Pereira Mendes.  

O bodegueiro riu e asseverou: “Esse rapaz ai mora aqui na rua. Por ele eu me responsabilizo.” Pronto, estava garantido o habeas corpus que livraria o meu velho da cadeia por subversão. Os demais "comunistas" - habitués ou não da bodega - foram presos. Aliás, bastava ter o sobrenome Alencar para ser suspeito. Afinal de contas, Miguel Arraes de Alencar era ou não era o maior comunista daquela terra? Meu Deus!

Dias antes da desarticulação da célula comunista abrigada na bodega de seu Tonho, meu pai havia cumprido uma missão (quase) revolucionária. Fora chamado por Chico Pierre para queimar alguns livros suspeitos pertencentes aos qua haviam caído na “mão dos homens”. Era preciso eliminar evidências! A queima se deu no interior da firma  F.C. Pierre & Filhos (meu pai garante que seu Chico nem sequer o esperou acender o fósforo. Foi tomar umas na Boate Colibri, onde mulher não entrava).

E ali, sozinho, ficou o meu quase-comunista pai a queimar conhecimento. Tinha de tudo: d’O Capital a cartilhas do PTB. Bastava ter a capa vermelha! Cresci ouvindo meu velho falar da cartilha “Um Dia na Vida do Brasilino”, um libelo atiimperialista que pode ser conferido aqui: http://www.culturabrasil.pro.br/brasilino.htm.

O 31 de março deste ano marca o 48º aniversário de toda essa tragédia. Quatro anos depois viria o AI-5 e, com ele, as prisões dos comunistas cratenses.  Seu Elói comunista, pois tá! Meu pai comunista...alguém acredita? Livros queimados... E o bodegueiro seu Tonho a assistir as marchas e contramarchas revolucionárias enquanto servia algumas doses de cachaça. A luta continua!

  

sábado, 10 de março de 2012

Meu tio morreu ontem

José Silvestre era o mais velho dos irmãos vivos de minha mãe. Dos que vingaram, já que muitos morreram em botão. Morreu ontem pertinho de completar 83 anos. Um vencedor. Tenho pouco a dizer dele. Convivemos pouquíssimo. Três quatro encontros, no máximo.

José partiu para o Rio de Janeiro como a maioria dos nordestinos fazia – alguns ainda o fazem. Fugia das agruras da roça, do sol causticante, do infortúnio. Conheceu o Rio romântico, sem a violência extremada. Crimes? Sim, havia crimes: pequenos roubos e furtos e homicídios de natureza passional. Nada de guerra civil não declarada como se vê atualmente. Era o Rio da Lapa boêmia.

Um belo domingo, ao patrulhar um clássico no Maracanã, deteve um bêbado que estava um tanto “alterado”. Ao conduzi-lo, foi lhe dando conselhos. Até que identificou no sujeito o sotaque familiar. Levou o torcedor até a saída mais próxima e recomendou: vai, meu irmão, pega o caminho de casa que amanhã tem batente.  

Foi policial a vida toda. Viu crescer saudáveis os três filhos: João, que lhe seguiu os passos e hoje é coronel da PM carioca, Tereza, e Flávia. As principais lembranças que tenho remontam a uma visita que ele nos fez, acredito que no início da década de 1980. Parecia um padre. Melhor: um bispo, pelo corpo avantajado (não gordo, mas grande) e voz serena e pausada.

As outras reminiscências são mais ricas, já que mediadas pela memória de minha mãe. Explico: quando se vivencia um fato, colhemos nossas impressões, quando o fato nos é narrado, sobretudo de maneira apaixonada, a imaginação viaja livremente e constrói o personagem ou a história próxima do ideal. José Grande. Eram tantos filhos que há outro José, o Zeca. Por isso o Zé Grande.

José morreu ontem. Em casa, com o dever cumprido como na Consoada de Manuel Bandeira. Na verdade, José começou morrer quando Tereza – filha amada - o deixou e foi para o Céu, lugar para onde vão os nossos filhos que morrem antes da gente (até a mãe do Iscariotes acredita nisso). Morreu na Quaresma. Como num ato de contrição. Deixando cada coisa em seu lugar.

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Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira