Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sábado, 10 de março de 2012

Meu tio morreu ontem

José Silvestre era o mais velho dos irmãos vivos de minha mãe. Dos que vingaram, já que muitos morreram em botão. Morreu ontem pertinho de completar 83 anos. Um vencedor. Tenho pouco a dizer dele. Convivemos pouquíssimo. Três quatro encontros, no máximo.

José partiu para o Rio de Janeiro como a maioria dos nordestinos fazia – alguns ainda o fazem. Fugia das agruras da roça, do sol causticante, do infortúnio. Conheceu o Rio romântico, sem a violência extremada. Crimes? Sim, havia crimes: pequenos roubos e furtos e homicídios de natureza passional. Nada de guerra civil não declarada como se vê atualmente. Era o Rio da Lapa boêmia.

Um belo domingo, ao patrulhar um clássico no Maracanã, deteve um bêbado que estava um tanto “alterado”. Ao conduzi-lo, foi lhe dando conselhos. Até que identificou no sujeito o sotaque familiar. Levou o torcedor até a saída mais próxima e recomendou: vai, meu irmão, pega o caminho de casa que amanhã tem batente.  

Foi policial a vida toda. Viu crescer saudáveis os três filhos: João, que lhe seguiu os passos e hoje é coronel da PM carioca, Tereza, e Flávia. As principais lembranças que tenho remontam a uma visita que ele nos fez, acredito que no início da década de 1980. Parecia um padre. Melhor: um bispo, pelo corpo avantajado (não gordo, mas grande) e voz serena e pausada.

As outras reminiscências são mais ricas, já que mediadas pela memória de minha mãe. Explico: quando se vivencia um fato, colhemos nossas impressões, quando o fato nos é narrado, sobretudo de maneira apaixonada, a imaginação viaja livremente e constrói o personagem ou a história próxima do ideal. José Grande. Eram tantos filhos que há outro José, o Zeca. Por isso o Zé Grande.

José morreu ontem. Em casa, com o dever cumprido como na Consoada de Manuel Bandeira. Na verdade, José começou morrer quando Tereza – filha amada - o deixou e foi para o Céu, lugar para onde vão os nossos filhos que morrem antes da gente (até a mãe do Iscariotes acredita nisso). Morreu na Quaresma. Como num ato de contrição. Deixando cada coisa em seu lugar.

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Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira

Um comentário:

  1. Esta semana meu pai me disse - porque tava com virose, desidatrado, se encaminhando para um hospital - desse jeito vou é morrer! Eu lhe respondi em tom brando, sem saber se era revolta, acalanto, conformação ou tudo misturado, meu pai nessa vida a gente começa a morrer, assim que nasce! Não devia então ser tão pesaroso toda vez que um dos nossos se vai. Espero que Deus tenha recebido bem seu tio Grande e aquiete os corações de quem ficou aqui sofrendo pela partida dele. Beijos Kranho. Eu também adoro essa poesia.

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