Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Barrabás

Quando eu era bem menino, ainda nos anos das primeiras letras, minha mãe professora guardava em casa muitos livros de Português. Num deles, acho que uma gramática ilustrada, havia uma figura qualquer na qual um garoto (acho que na praia) deparava-se com uma mulher muito feia e exclamava, de cabelo em pé, ‘Barrabás!!!!’. No restante do enredo, a memória não me ajuda.

O tempo passou e aquela imagem ficou guardada nalgum canto da gaveta das recordações de não-sei-porquê. Fato é que, com o passar dos anos, comecei a empregar a mesma expressão contida na anedota sempre que me via diante de situação inusitada: a notícia de uma catástrofe familiar, um acidente, um crime passional...

Certa vez um amigo me perguntou de onde vinha o bordão. Expliquei mais ou menos. Mas, para não encompridar a conversa, e dando ares mais poéticos à história, disse que tinha adjetivado a palavra Barrabás de propósito: afinal de contas, tivesse a humanidade gritado “Jesus” quando teve a opção, o mundo seria outro.

É também desse tempo infância a recordação do Barrabás da Semana Santa. Vinha na aquarela pintada pelo rádio, nas dramatizações que deixavam o menino emocionado e com lágrimas nos olhos: http://www.youtube.com/watch?v=OvnNp6uCivo&feature=relmfu

Não cabia no coraçãozinho miúdo a traição que o povo cometia ao gritar “Soltem Barrabás!” Ainda mais que o julgamento acontecia somente uma semana após essa mesma gente saudar com ramos a entrada triunfal de Jesus na cidade no lombo de um jumento (“a mão que afaga é mesma que apedreja”, aprenderia anos mais tarde).

E ficava ali, triste, ouvindo atento a cada detalhe da narrativa dramatizada no rádio. A cabeça a mil por hora a formar imagens de como seriam os soldados romanos, Caifás, Pilatos, o Calvário, Barrabás...

Jesus, não. Esse eu já conhecia desde o Catecismo: era branco, tinha bondosos olhos claros, barba e cabelos longos.

Semana Santa, tempo de contrição, jejum, penitência. As rádios tocavam músicas sacras ou religiosas. No cinema, a Paixão de Cristo. Nas casas mais abastadas, ceia de Páscoa. Os mais pobres passavam “pedindo o jejum”. Ovos de chocolate não existiam. Faz tanto tempo...

O clima nas casas ficava mais triste na quinta e na sexta. Era como se o morto estivesse na sala. Os santos eram cobertos por toalhas rendadas e os adultos não comiam a não ser nas horas certas. E eu tinha raiva de ser criança e não poder jejuar. Na procissão, achava terrivelmente doído o encontro do Senhor Morto com a Virgem Maria. As imagens cobertas por mantos roxos. A Catedral da Sé lotada de pessoas sem sorrisos, como convinha à ocasião.

No sábado, após julgamento sumário, um Judas de pano agonizava na ponta de uma corda no largo do Mercado Redondo. Era a festa da catarse para onde acorria a turba ignara. Sim, pois a pequena-burguesia estava em casa, consciência tranquila por haver jejuado e contribuído para normalidade das coisas ao separar a bondosa esmola para os mais necessitados.

Barrabás!