O tempo passou e aquela imagem ficou guardada nalgum canto da gaveta das recordações de não-sei-porquê. Fato é que, com o passar dos anos, comecei a empregar a mesma expressão contida na anedota sempre que me via diante de situação inusitada: a notícia de uma catástrofe familiar, um acidente, um crime passional...
Certa vez um amigo me perguntou de onde vinha o bordão. Expliquei mais ou menos. Mas, para não encompridar a conversa, e dando ares mais poéticos à história, disse que tinha adjetivado a palavra Barrabás de propósito: afinal de contas, tivesse a humanidade gritado “Jesus” quando teve a opção, o mundo seria outro.
É também desse tempo infância a recordação do Barrabás da Semana Santa. Vinha na aquarela pintada pelo rádio, nas dramatizações que deixavam o menino emocionado e com lágrimas nos olhos: http://www.youtube.com/watch?v=OvnNp6uCivo&feature=relmfu
Não cabia no coraçãozinho miúdo a traição que o povo cometia ao gritar “Soltem Barrabás!” Ainda mais que o julgamento acontecia somente uma semana após essa mesma gente saudar com ramos a entrada triunfal de Jesus na cidade no lombo de um jumento (“a mão que afaga é mesma que apedreja”, aprenderia anos mais tarde).
E ficava ali, triste, ouvindo atento a cada detalhe da narrativa dramatizada no rádio. A cabeça a mil por hora a formar imagens de como seriam os soldados romanos, Caifás, Pilatos, o Calvário, Barrabás...
Jesus, não. Esse eu já conhecia desde o Catecismo: era branco, tinha bondosos olhos claros, barba e cabelos longos.
Semana Santa, tempo de contrição, jejum, penitência. As rádios tocavam músicas sacras ou religiosas. No cinema, a Paixão de Cristo. Nas casas mais abastadas, ceia de Páscoa. Os mais pobres passavam “pedindo o jejum”. Ovos de chocolate não existiam. Faz tanto tempo...
O clima nas casas ficava mais triste na quinta e na sexta. Era como se o morto estivesse na sala. Os santos eram cobertos por toalhas rendadas e os adultos não comiam a não ser nas horas certas. E eu tinha raiva de ser criança e não poder jejuar. Na procissão, achava terrivelmente doído o encontro do Senhor Morto com a Virgem Maria. As imagens cobertas por mantos roxos. A Catedral da Sé lotada de pessoas sem sorrisos, como convinha à ocasião.
No sábado, após julgamento sumário, um Judas de pano agonizava na ponta de uma corda no largo do Mercado Redondo. Era a festa da catarse para onde acorria a turba ignara. Sim, pois a pequena-burguesia estava em casa, consciência tranquila por haver jejuado e contribuído para normalidade das coisas ao separar a bondosa esmola para os mais necessitados.
Barrabás!