Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Mar adentro

Miguel, faz 11 anos você embarcou para a longa travessia a bordo da Nau Catarineta. Travessia chamada vida. É, meu filho, a vida é assim como o Romance da Nau Catarineta: mantimentos se esgotam, surgem tentações diabólicas para, afinal, aparecer a intervenção divina, que leva a nau ao porto seguro. Você tem se mostrado um marinheiro audaz, esperto o bastante para saber que não se enfrenta o mar invencível. Como ensinava Hemingway, os mares são ora agitados, ora calmos. Muitas vezes traiçoeiros. É preciso decifrar os seus segredos: ventos, marés, comportamento dos cardumes... mas, é preciso sorte também.
Você é minha sorte!

Será longa (e afortunada) a sua travessia. Apesar das privações. Das inúmeras as tentações. Mire-se sempre no capitão da Nau Catarineta: “Renego de ti, demônio, que estavas a me tentar. A minha alma eu dou a Deus, e o meu corpo eu dou ao mar.”

E siga livre-menino, como na foto, brincando com Netuno
o deus das Águas.






PS. Você tem nome de anjo. Anjo forte, aquele que é como Deus! O capitão da Nau Catarineta ao atirar-se no mar, foi salvo por um anjo igualzinho a você.


“Um anjo o tomou nos braços, não o deixou se afogar. Dá um estouro o demônio, acalmam-se o vento e o mar. E, à noite, a Catarineta chegava ao porto do mar.”

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Os irmãos de minha mãe

 Quando arribava um menino – filho sempre é menino – Maria Grande voltava os olhos para a estrada poeirenta e chorava. Com saudade do seu “tiquim de filho”. Era assim que ela os tratava, fossem dos grandes ou dos mais miúdos. José Grande, Sebastião, Joaquim, Antonio, Afonso, Luís, Raimundo e José Venilson (pequeno, já que mais novo). Todos arribaram. Um ou outro voltou.

Bastião. Tenho a impressão de que ele nunca se alterou.  Era um homem suave.
Um dia foi ao médico: “O senhor tem quantos anos?”, perguntou o doutor por trás de um raio-X.  -78...
“Fuma desde quando?” 
– 14.
“Seria bom ele para de fumar!” interveio minha mãe, que o acompanhava.
“Não. Não é mais necessário.”

Zé Grande eu conheci pouco. Foi pro Rio de Janeiro há muitos anos. Meu avô João prostrou-se numa rede quando deu conta da fuga. Pelo que ouvi falar, José morreu de tristeza após perder a filha Tereza para a depressão.


Os gêmeos vieram depois da tragédia: Maria Grande chorara e praguejara tanto que o Criador parece ter-se arrependido de tirar-lhe um filho de seis meses. Na barriga seguinte, nasciam  Joaquim e Antônio. Duas jóias. Joaquim é das aves que acertaram com a estrada de volta. Antônio arranchou-se no Paraná.

O namorador Afonso  gostava de pinga e de forró. Levou vida de gado. Sempre no lombo de um animal. Luís fez-se enfermeiro por onde andou. Patrulhou Suez, no Egito, pelas forças da ONU.
Raimundo tornou-se militar. Um homem de pedra com coração de manteiga. E o outro José, que fechou a conta.

Sebasto e Zé Grande – só esse “tiquim” – reencontraram João Silvestre e Maria Grande. Dessa vez, sem choro nem estradas poeirentas. Pois, tenho certeza de que, aonde quer que estejam, não há mais invernos nem verões. De lá ninguém arriba por precisão. No céu dos sertanejos, o muçambê viceja com sua fulô branca aberta o ano inteirinho. 

PS. Na ordem, da esquerda para direita, de cima para baixo: José Silvestre (Zé Grande), Sebastião Silvestre, Joaquim Silvestre, Antônio Silvestre, Afonso Silvestre, Luís Silvestre, Raimundo Silvestre e José Venilson Silvestre.














sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Dona Chaguinha

Dona Chaguinha era mulher do tempo antigo. Ou como diria um tio torto e muito querido: “do outro tempo” (ele sempre usa essa expressão quando se refere a histórias remotas). Do tempo em que mulher era sinônimo de tolerância. Não a tolerância materna. Não a tolerância advinda da sabedoria de quem tem de partilhar amor igual entre filhos e marido tão diferentes quanto exigentes. Mas da tolerância do "não-tem-outro-jeito". Não a conheci. Não tive esse privilégio.

Esta semana foi marcada pela perda de dona Maria Gomes da Silva, a “dona Purizinha”. Soube da notícia através da voz chorosa de minha mãe, amiga de longa data. “Nosso Senhor chamou Purizinha, meu filho”.  Quando eu era bem pequeno, mas pequeno de não me pôr de pé, era na casa de dona Purizinha que eu passava manhãs, enquanto minha mãe corria atrás do pão-nosso-de-cada-dia. Era no bairro do Seminário, Crato. Faz quase cinco décadas.

No velório, ouvi de uma das filhas que a mãe-Purizinha fora abandonada pelo marido. Duas filhas pequenas e um menino adotado, menor ainda. “Meu pai voltou quando eu já estava casada, com filhos”, disse, chorosa, diante da mãe morta. “Foi mamãe quem o recebeu bem, como a um amigo. Para nós, ele era praticamente um estranho”. Mãe de umbigo de muitos, Purizinha (sim, ela era parteira) cuidou de mim. Cuidou dos filhos. Depois dos netos. De minha mãe. E de muito mais gente no tempo de enfermeira.

 Ao encomendar o corpo o padre lembrou que, horas antes da morte, ao ouvir a extrema-unção, ela recobrara a lucidez e pronunciara, com firmeza, um solene “amém”. “Estava preparada”, assegurou o sacerdote. Fiquei ali, olhando aquele corpo sem vida. Pensei em minha mãe chorosa. E fiquei também triste. Mas, satisfeito com as palavras do padre: “Preparada”.


Voltemos agora a dona Chaguinha. Era a mãe de dona Purizinha. Conviveu anos a fio com a traição do marido, que mantinha uma amante em Juazeiro, onde era raizeiro. Como disse acima, era mulher do tempo antigo, do outro tempo. Quando não se largavam maridos. Por trates que fossem. Ainda mais com filhos pequenos, em cidade pequena e conservadora. Dona Chaguinha resistiu, resignada. Nunca conformada. Talvez por isso gostasse de uma cachacinha vez por outra. 

Não quis ir à missa de sétimo dia do traste. As filhas repreenderam. “Pois vão na frente, que eu vou já”.  Ao sair da casa em direção à igreja, passou antes na vizinha, menos para dar um alô e mais para ser vista no seu luto inusual. E partiu num vestido estampado de cores vivas, como convém às viúvas aliviadas.

Dona Chaguinha morreu um dia após o genro – esposo da filha Purizinha – aparecer em casa após longos anos ausente. Gostava dele, apesar de tudo.

Na quarta-feira passada, Purizinha encontrou-se com dona Chaguinha no Céu das mães (tenho certeza que tem um céu especial só pra elas). Provavelmente a esperava com uma caninha boa, concessão dos anjos mais safados às velinhas de fibra.  E houve festa.