Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Dona Chaguinha

Dona Chaguinha era mulher do tempo antigo. Ou como diria um tio torto e muito querido: “do outro tempo” (ele sempre usa essa expressão quando se refere a histórias remotas). Do tempo em que mulher era sinônimo de tolerância. Não a tolerância materna. Não a tolerância advinda da sabedoria de quem tem de partilhar amor igual entre filhos e marido tão diferentes quanto exigentes. Mas da tolerância do "não-tem-outro-jeito". Não a conheci. Não tive esse privilégio.

Esta semana foi marcada pela perda de dona Maria Gomes da Silva, a “dona Purizinha”. Soube da notícia através da voz chorosa de minha mãe, amiga de longa data. “Nosso Senhor chamou Purizinha, meu filho”.  Quando eu era bem pequeno, mas pequeno de não me pôr de pé, era na casa de dona Purizinha que eu passava manhãs, enquanto minha mãe corria atrás do pão-nosso-de-cada-dia. Era no bairro do Seminário, Crato. Faz quase cinco décadas.

No velório, ouvi de uma das filhas que a mãe-Purizinha fora abandonada pelo marido. Duas filhas pequenas e um menino adotado, menor ainda. “Meu pai voltou quando eu já estava casada, com filhos”, disse, chorosa, diante da mãe morta. “Foi mamãe quem o recebeu bem, como a um amigo. Para nós, ele era praticamente um estranho”. Mãe de umbigo de muitos, Purizinha (sim, ela era parteira) cuidou de mim. Cuidou dos filhos. Depois dos netos. De minha mãe. E de muito mais gente no tempo de enfermeira.

 Ao encomendar o corpo o padre lembrou que, horas antes da morte, ao ouvir a extrema-unção, ela recobrara a lucidez e pronunciara, com firmeza, um solene “amém”. “Estava preparada”, assegurou o sacerdote. Fiquei ali, olhando aquele corpo sem vida. Pensei em minha mãe chorosa. E fiquei também triste. Mas, satisfeito com as palavras do padre: “Preparada”.


Voltemos agora a dona Chaguinha. Era a mãe de dona Purizinha. Conviveu anos a fio com a traição do marido, que mantinha uma amante em Juazeiro, onde era raizeiro. Como disse acima, era mulher do tempo antigo, do outro tempo. Quando não se largavam maridos. Por trates que fossem. Ainda mais com filhos pequenos, em cidade pequena e conservadora. Dona Chaguinha resistiu, resignada. Nunca conformada. Talvez por isso gostasse de uma cachacinha vez por outra. 

Não quis ir à missa de sétimo dia do traste. As filhas repreenderam. “Pois vão na frente, que eu vou já”.  Ao sair da casa em direção à igreja, passou antes na vizinha, menos para dar um alô e mais para ser vista no seu luto inusual. E partiu num vestido estampado de cores vivas, como convém às viúvas aliviadas.

Dona Chaguinha morreu um dia após o genro – esposo da filha Purizinha – aparecer em casa após longos anos ausente. Gostava dele, apesar de tudo.

Na quarta-feira passada, Purizinha encontrou-se com dona Chaguinha no Céu das mães (tenho certeza que tem um céu especial só pra elas). Provavelmente a esperava com uma caninha boa, concessão dos anjos mais safados às velinhas de fibra.  E houve festa.





Um comentário:

  1. Os tempos realmente são outros, o tipo de tolerância também mudou, mas as mulheres continuam muito iguais: sempre carregam um inusitado para surpreender. Beijos Cranho.

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