Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Penha


A festa da padroeira da minha cidade acontece em agosto. Termina no 1º de Setembro, quando se davam vivas a Nossa Senhora da Penha e os católicos saiam em procissão. Talvez ainda saiam. Lembro de janelas enfeitadas com flores e toalhas rendadas na Rua da Pedra Lavrada. Mulheres usavam véus na cabeça enquanto debulhavam rosários de contas. Benditos eram entoados.

Mas, o que me encantava naquele tempo de meninice era a quermesse. Nem o parque, com seus carrosséis, rodas-gigantes e maçãs-do-amor me atraíam mais. Nem “Monga”, a mulher-macaco. Ao lado da Igreja Matriz, montava-se o barraca da Diocese.  Ali aconteciam os leilões e, nos leilões, as disputas por prendas prosaicas.

Quando meu pai engajou-se na igreja – no chamado ‘movimento leigo’ – passou também a “administrar” o bar da barraca da Diocese, onde aconteciam também os leilões. Acho que a escolha deveu-se à sua grande experiência pretérita com bebidas. Fato é que tudo ia bem. Eu ficava por ali, peruando, comendo churrasquinho com refrigerante, pipoca, rolete de cana.

Certa noite, o comerciante e amigo Luiz Manoel de Oliveira disputava uma galinha assada com alguém de quem  não me lembro. Apenas sei que o camarada era irritante. A cada lance de seu Luiz, a criatura acrescentava R$ 0,50. Os leiloeiros eram José de Paula Bantim, um brincalhão de marca maior, e “Biloto”, sujeito que percorria as mesas oferecendo a prenda a arremate.

Mais um lance de R$ 0,50 centavos e vinha o grito: “R$ 100,50 que é pra seu Luiz não comer frango hoje!”. Seu Luiz já estava vermelhinho: de rir e de umas e outras que havia tomado. E tascava: "R$ 110,00...R$ 110,50...R$ 120,00... R$ 120,50..." E a galinha ficando cara.

Juro que não me recordo por quanto saiu a penosa, que era oferecida envolta em papel celofane laranja.

Mas, lembro que, logo após ao “Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três...Tô entregando, já entreguei” (claro que na mesa de seu Luiz), o safado do ‘Biloto’ tomou o microfone das mãos de Bantim e saiu-se com essa:

“Eita! Galinha desse preço só quem come é Luiz Manoel e galo!!”

Até a virgem da Penha corou.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Feiras, ciganos e atavismos

Maria Silvestre, a “Maria Grande”, passou uma vida a aperrear meu avô João Silvestre (sim, isso mesmo, sou neto de João e Maria, ambos silvestres) para que ele desse fim a um enorme tamboril que existia na frente da casa velha. João nunca a atendeu. Então, ela resolveu cercar a morada com uma segura cerca de faxina, de varas bem juntinhas e entrelaçadas.

Era debaixo da imensa árvore que os ciganos montavam rancho. Dias antes da chegada dos nômades, começavam a sumir coisas e bichos: um pano do varal, uma galinha gorda (ou magra, tanto fazia), um bacurim, uma criação. Minha mãe dá conta do sumiço de uma perua choca, levada de cima do ninho!

Acampamento montado, nada mais levava sumiço. Dessa forma, nada se tinha a imputar contra nenhum membro do grupo. Mas para minha avó estava certo como a luz do dia: eram eles. Praguejava contra o acampamento no terreiro de casa mas, impotente, resignava-se a bater as portas e janelas e pegar-se com o rosário de contas.

Muitos anos depois, João e Maria já morando na cidade, fui incumbido de acompanhar minha avó na feira do Crato. Antes, porém, passamos no Banco do Brasil, onde receberia o aposento. Aliás, era a minha missão: prestar atenção para que ela, já muito idosa, não fosse tapeada por algum comerciante menos escrupuloso. Ou por um cigano, quem sabe?

No banco, Maria furou a fila do idoso. Afinal, Rosa, a senhora do caixa, era sua sobrinha. Entregou os papéis (naquele tempo não tinha a facilidade de cartão magnético, tudo era no caixa), e sentou-se tranquila à espera do seu dinheirinho. Depois era a feira.

Paramos numa banca de frutas. Eu limitando-me acompanhar e a observar. Enquanto escolhia bananas, um menino lhe pediu uma esmola. Sem titubear, Maria quebrou a penca em duas e atirou metade ao chão sem que o feirante visse. O menino apanhou saiu apressado. Estava feita a cortesia com o chapéu alheio.

Mais à frente: “Esse feijão tá muito caro!” – “É feijão novo, Vozinha. Veja...”, disse o feirante apertando a unha contra o grão, que estava molinho. “Isso é da chuva, Zé! Abaixe esse preço”. E eu do lado, a constatar: “Podem enganar outra, não essa dai”.

Diz o dicionário que “atavismo” é a “Reaparição, em um descendente, de certos caracteres vindos de um antepassado, e que não se haviam manifestado nas gerações intermediárias”.

Deve ser isso mesmo. Gosto muito de feira e não morro de amores por ciganos. Na verdade, acho interessante a cultura cigana. Também quero deixar claro que considero abominável sob todas as formas a perseguição a que foi submetido o povo cigano pelo nazismo. Só não gosto. Como não gosto da música Jorge Vercilo.

Pois bem. Voltemos ao atavismo. Estamos agora em 2012, na feira de Messejana. É para onde vou aos domingos cedinho sentir a cidade, seus odores (mesmo os ruins), seus sons (mesmo os ruins), seus sabores (mesmo a cachaça), seu povo. Se na feira tem quinquilharia importada, CDs e DVDs piratas e imagens em 3D do coração de Jesus, tem também garapa de cana, bolo manzape, galinha caipira, feijão novinho, e saudade de vó.

E tem também cigano. Pelo menos, nesse dia, tinha. Era uma passagem estreita entre as bancas e uma velha de vestido rodado e colorido, com um pano na cabeça, conversava baixinho no ouvido de um homem. No imprensado, tentando passar adiante com meus pacotes de compras, a ouvi dizer: “Bote o dinheiro na minha mão! Ele é seu, rapaz. Continua seu, mas bote na minha mão”. O homem com aparência simples estava seduzido, a mão entreaberta e algumas notas de R$ 50 à mostra.

No instante em que me desvencilhei do pequeno tumulto que me prendia, gritei a plenos pulmões: “Sai fora, abestado!” O homem 
saiu do aparente transe que o envolvia e voltou a apertar o seu dinheirinho na mão. Olhei para trás e vi a velha senhora a praguejar em minha direção.

Sai dali rindo e me lembrando de Maria Grande, que tinha medo, mas era astuta como um cigano.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Feliz como um menino

A possibilidade de permanecer criança existe: chama-se filho. A diferença é que, em vez de ‘reinar’ você mesmo, você se delicia com as reinações deles. Claro, tem também febre, vômito, coriza constipação, braço quebrado, talho na testa, enfim, um monte de aflições que somem na magia do primeiro sorriso.

Que Papai do Céu dê sabedoria a este sertanejo rude para que eu saiba orientar esses pequenos navegantes (foto) na longa jornada mar adentro. Sei que os mares são ora agitados, ora calmos. Muitas vezes traiçoeiros. É preciso decifrar os seus segredos: ventos, marés, comportamento dos cardumes... mas, é preciso sorte também, como ensinou Hemingway.

Mirem-se no velho Santiago, que tinha “têmpera de aço, acreditava em si mesmo, e partia sozinho para o mar alto, munido da certeza de que, desta vez, seria bem-sucedido no seu trabalho”. Não desistam, mesmo quando o mar disser o contrário. E contem sempre com o seu velho pai. Estarei sempre no cais, feliz como uma criança, à espera do retorno dos meus meninos.

PS. Após alguns meses de ausência, estou de volta. Encontro este espaço exatamente como o deixei em junho passado. Mas, para minha surpresa, algumas pessoas generosas se mantiveram fiéis, visitando o blog com frequência. Por isso, volto hoje, com texto que fiz na semana passada, dedicado aos meus filhos.  

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Atrás da bola



A foto ao lado, que surgiu numa rede social por obra e graça da amiga Diana Feitosa, me trouxe uma recordação especial do tempo de menino solto, sem “peias nem chocalho”, como costumava dizer meu pai. O grupo da foto era o que se reunia nos gramados dos vizinhos Paulo Leonardo ou Dulcilene Landim pra correr atrás da bola.

Ai vem o tempo, mais traiçoeiro companheiro de jornada de nós meninos: um vai estudar no recife. Outro migra pra Fortaleza. Um morre. Aquele acolá tem de trabalhar mesmo ainda imberbe e abandona os rachas de fim de tarde. Dispersamo-nos.

Mas, tinha uma outra galera, que rachava sempre aos domingos, no Parque Granjeiro. Era o time formado quase todo por membros de uma mesma família: filhos, sobrinhos e netos de seu João Hosana. Homem simples, ‘morador’ das terras do Engenho de Aderson Tavares Bezerra, hoje desativado.

Entrei para o time por acaso. Estava na estrada fazendo não sei o quê numa manhã de domingo, quando a equipe passou. O grupo dirigia-se ao Parque Granjeiro, onde disputaria com o rival de lá uma partida que, se a memória não me falta, era revanche.

Me chamaram pra compor a equipe. Não pensei duas vezes. Formava com João Azul (líder do grupo), Turil, Narcélio Cão-Amarrado, Robô de Lata, Pantico e Babilônia, único branco da equipe além de mim. Na verdade, Babi era louro. E outros, a quem o tempo fez o favor de embaçar na memória.

O uniforme era precário. Apenas uma camiseta branca de algodão com a numeração escrita com pincel. Ganhei a camisa 11. Joguei como nunca naquele dia e marquei quatro gols. Perdemos por 11 a nove. Sai de lá com apelido de Júlio César, que era o ponta esquerda bom de bola daquele tempo.

Onde estarão todos eles? João Azul, o negro simpático e boa gente que liderava o grupo? Toicim? Oswaldo Robô de Lata, Narcélio (se gritassem: “Soltaram o cão!” era capaz de haver uma morte), Pantico, Babilônia... perderam-se no tempo. Soube depois que alguns deles haviam migrado pra São Paulo, no início dos anos 1980.

Nosso campinho de terra batida, onde se jogava descalço, não existe mais. Há casas no lugar e o Parque Granjeiro virou um aprazível bairro. Tomara que ainda haja meninos por lá. E uma bola no meio deles.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O filhós é nosso

Vejo nos jornais a notícia – quase numa exclamação – de que amanhã será inaugurada a primeira unidade do McDonald’s no Cariri. Será em Juazeiro, num shopping. Haverá quem trate a novidade como sinal de modernidade, mesmo depois da coca-cola na China e do fliperama em Macau.


Na mesma edição, letras informam que a poderosa Disney vai cortar a publicidade de TV dos chamados “alimentos junk-food”. Na semana passada, o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, propôs a proibição da venda de “bebidas açucaras (leia-se refrigerantes)” em embalagens de mais de meio litro.

As duas medidas anunciadas nas terras ianques têm o mesmo objetivo: combater a grave epidemia de obesidade entre os norte-americanos. A primeira-dama Michele Obama encabeça campanha por hábitos alimentares mais saudáveis nas escolas daquele país.

É certo que as crianças vão poder brincar com o Ronald McDonald, o boneco-síntese de toda essa desgraça. Também terão à mão, em troca apenas de um punhado de reais, batata padrão McDonald. Sempre quentinha e com sabor papelão.

Haverá sanduíches McIsso, McAquilo... Quarteirão. E um traiçoeiro McDiaFeliz.

Socorro-me do Dicionário Michaellis para garantir a precisão - Desgosto: 1 Ausência de gosto ou prazer. 2 Desprazer, mágoa, pesar, sentimento. 3 Aversão, desagrado, descontentamento, repugnância. Pl: desgostos (ô). Antôn: prazer, contentamento. É isso que me invade neste momento: desgosto.

Então me lembro do tijolo de leite de seu Joaquim Patrício, dos caldos de caridade de Raimunda Brasileiro (dona Mundinha) no mercado velho da Rua Santos Dumont, do filhós de Marlene e família que ainda hoje pontificam na Praça da Sé, da merenda de Maria Passarinha do pirão do Pau do Guarda... Coisas nossas. Tapioca quentinha com manteiga-da-terra. Paçoca bem pilada com cebola roxa. A rapadura, o alfenim. Salvemos que ainda resta e que, como diz o dicionário "tem valor real"!


Por último, recorro novamente ao Michaellis - junk food: 1 alimento rico em calorias de baixo valor nutritivo, mas fácil e rápido de preparar. 2 sl algo que é agradável ou atraente, mas que tem pouco valor real. Os grifos são meus. 


PS. Agora me deu vontade de chupar uma manga espada até o caroço ficar branco! 


quarta-feira, 30 de maio de 2012

A palha e o oco

Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 


2. 

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
(João Cabral de Melo Neto)

A debulha de um punhado de vagens de feijão me trouxe o poema acima.

Começou no domingo passado, quando minha irmã me deu um saco de feijão meio seco, meio verde.

Não. Na verdade, começou desde sempre: cresci vendo ora pai, ora mãe, debulhar feijões. Coisa de quem tem o pé na roça. Os pés na roça.

Nessa tarefa, meu pai sempre foi mais presente. Com paciência que não demonstra comumente em outras atividades, ele é capaz de permanecer horas a fio sentado, bacia no colo, vasilha a receber as cascas ao rés do chão.

Nunca havia percebido – até instantes atrás – que aquele gesto prosaico, comum a tantas casas simples de pessoas ligadas ao Sertão, encerrava lições de perseverança.

No início, o volume grande de vagens desencoraja a empreita. Tempo passa, serviço não rende. Terminada a tarefa está lá um punhado de feijão. Garantia das crias apascentadas.

No meu feijão o ciclo está incompleto: debulhado, catado, pronto para a panela. Faltou relação mágica do plantar e do colher. Do preparar a terra.

Faltou ver o feijão brotar. Frágil, duas folhinhas. Crescer, esparramar-se pela terra. Florar, soltar canivetes – sim, as pequenas vagens, são a pré-adolescência do feijão, com seus canivetes ansiosos.


Depois-a-colheita-rápida-senão-vem-a-chuva-e-põe-tudo-a-perder.

Enquanto catava meu punhado de feijões, as palavras começaram a emergir. Impregnadas de um sentimento mágico que envolve pai e mãe, meu mais-que-perfeito baião de dois. O poeta deverá me perdoar os excessos, as gorduras, a palha e o oco que permanecem na página.

E, é claro, perdoará também a ausência da pedra que daria ao texto seu grão mais vivo. Mas, dá licença, queria apenas o prazer de catar meus feijões ombro a ombro com meus pais.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Barrabás

Quando eu era bem menino, ainda nos anos das primeiras letras, minha mãe professora guardava em casa muitos livros de Português. Num deles, acho que uma gramática ilustrada, havia uma figura qualquer na qual um garoto (acho que na praia) deparava-se com uma mulher muito feia e exclamava, de cabelo em pé, ‘Barrabás!!!!’. No restante do enredo, a memória não me ajuda.

O tempo passou e aquela imagem ficou guardada nalgum canto da gaveta das recordações de não-sei-porquê. Fato é que, com o passar dos anos, comecei a empregar a mesma expressão contida na anedota sempre que me via diante de situação inusitada: a notícia de uma catástrofe familiar, um acidente, um crime passional...

Certa vez um amigo me perguntou de onde vinha o bordão. Expliquei mais ou menos. Mas, para não encompridar a conversa, e dando ares mais poéticos à história, disse que tinha adjetivado a palavra Barrabás de propósito: afinal de contas, tivesse a humanidade gritado “Jesus” quando teve a opção, o mundo seria outro.

É também desse tempo infância a recordação do Barrabás da Semana Santa. Vinha na aquarela pintada pelo rádio, nas dramatizações que deixavam o menino emocionado e com lágrimas nos olhos: http://www.youtube.com/watch?v=OvnNp6uCivo&feature=relmfu

Não cabia no coraçãozinho miúdo a traição que o povo cometia ao gritar “Soltem Barrabás!” Ainda mais que o julgamento acontecia somente uma semana após essa mesma gente saudar com ramos a entrada triunfal de Jesus na cidade no lombo de um jumento (“a mão que afaga é mesma que apedreja”, aprenderia anos mais tarde).

E ficava ali, triste, ouvindo atento a cada detalhe da narrativa dramatizada no rádio. A cabeça a mil por hora a formar imagens de como seriam os soldados romanos, Caifás, Pilatos, o Calvário, Barrabás...

Jesus, não. Esse eu já conhecia desde o Catecismo: era branco, tinha bondosos olhos claros, barba e cabelos longos.

Semana Santa, tempo de contrição, jejum, penitência. As rádios tocavam músicas sacras ou religiosas. No cinema, a Paixão de Cristo. Nas casas mais abastadas, ceia de Páscoa. Os mais pobres passavam “pedindo o jejum”. Ovos de chocolate não existiam. Faz tanto tempo...

O clima nas casas ficava mais triste na quinta e na sexta. Era como se o morto estivesse na sala. Os santos eram cobertos por toalhas rendadas e os adultos não comiam a não ser nas horas certas. E eu tinha raiva de ser criança e não poder jejuar. Na procissão, achava terrivelmente doído o encontro do Senhor Morto com a Virgem Maria. As imagens cobertas por mantos roxos. A Catedral da Sé lotada de pessoas sem sorrisos, como convinha à ocasião.

No sábado, após julgamento sumário, um Judas de pano agonizava na ponta de uma corda no largo do Mercado Redondo. Era a festa da catarse para onde acorria a turba ignara. Sim, pois a pequena-burguesia estava em casa, consciência tranquila por haver jejuado e contribuído para normalidade das coisas ao separar a bondosa esmola para os mais necessitados.

Barrabás!

segunda-feira, 26 de março de 2012

A célula comunista

A bodega de seu Tonho tinha poucos recursos. Cachaça, conhaque, rum, campari e cerveja.  Um balcão encardido e prateleiras precárias.  O pé-direito alto, típico das casas antigas, contribuía para arejar o ambiente. Aqui e ali, uma réstia de luz coada pelo telhado ia marcar a passagem lenta das horas nas garrafas emparelhadas. Tinha ainda a conveniência de ficar situada na esquina das ruas Zé Marrocos com Monsenhor Esmeraldo, na esquina oposta à famosa Casa de Glorinha.

Foi seu Tonho quem tirou meu pai da prisão. Na verdade, seu Tonho evitou a prisão dele. A bodega era ponto de encontro de uma “turma de subversivos”. Dentre eles, o médico Raimundo Bezerra (que depois seria eleito prefeito do Crato) e Clodomir Ferreira Lima (vizinho e amigo do meu pai). Como meu velho pai morava algumas casas rua acima (na Monsenhor Esmeraldo) não era difícil encontrá-lo no pé do balcão de seu Tonho, tomando um trago após o dia de trabalho.

Os “comunistas” daquele tempo eram todos conhecidos: Valmir Farias, Gilberto e Juvêncio Mariano, Geraldo Formiga, seu Valdomiro (da Loja Asteca) e uma pá de gente do Banco do Brasil. Todos homens de bem. Mestre Elói Teles foi quem padeceu por mais tempo na prisão. Era 1968. Um oficial do Exército chegou à bodega de seu Tonho com uma lista de suspeitos. Nela estava o nome Djalma Pereira Mendes.  

O bodegueiro riu e asseverou: “Esse rapaz ai mora aqui na rua. Por ele eu me responsabilizo.” Pronto, estava garantido o habeas corpus que livraria o meu velho da cadeia por subversão. Os demais "comunistas" - habitués ou não da bodega - foram presos. Aliás, bastava ter o sobrenome Alencar para ser suspeito. Afinal de contas, Miguel Arraes de Alencar era ou não era o maior comunista daquela terra? Meu Deus!

Dias antes da desarticulação da célula comunista abrigada na bodega de seu Tonho, meu pai havia cumprido uma missão (quase) revolucionária. Fora chamado por Chico Pierre para queimar alguns livros suspeitos pertencentes aos qua haviam caído na “mão dos homens”. Era preciso eliminar evidências! A queima se deu no interior da firma  F.C. Pierre & Filhos (meu pai garante que seu Chico nem sequer o esperou acender o fósforo. Foi tomar umas na Boate Colibri, onde mulher não entrava).

E ali, sozinho, ficou o meu quase-comunista pai a queimar conhecimento. Tinha de tudo: d’O Capital a cartilhas do PTB. Bastava ter a capa vermelha! Cresci ouvindo meu velho falar da cartilha “Um Dia na Vida do Brasilino”, um libelo atiimperialista que pode ser conferido aqui: http://www.culturabrasil.pro.br/brasilino.htm.

O 31 de março deste ano marca o 48º aniversário de toda essa tragédia. Quatro anos depois viria o AI-5 e, com ele, as prisões dos comunistas cratenses.  Seu Elói comunista, pois tá! Meu pai comunista...alguém acredita? Livros queimados... E o bodegueiro seu Tonho a assistir as marchas e contramarchas revolucionárias enquanto servia algumas doses de cachaça. A luta continua!

  

sábado, 10 de março de 2012

Meu tio morreu ontem

José Silvestre era o mais velho dos irmãos vivos de minha mãe. Dos que vingaram, já que muitos morreram em botão. Morreu ontem pertinho de completar 83 anos. Um vencedor. Tenho pouco a dizer dele. Convivemos pouquíssimo. Três quatro encontros, no máximo.

José partiu para o Rio de Janeiro como a maioria dos nordestinos fazia – alguns ainda o fazem. Fugia das agruras da roça, do sol causticante, do infortúnio. Conheceu o Rio romântico, sem a violência extremada. Crimes? Sim, havia crimes: pequenos roubos e furtos e homicídios de natureza passional. Nada de guerra civil não declarada como se vê atualmente. Era o Rio da Lapa boêmia.

Um belo domingo, ao patrulhar um clássico no Maracanã, deteve um bêbado que estava um tanto “alterado”. Ao conduzi-lo, foi lhe dando conselhos. Até que identificou no sujeito o sotaque familiar. Levou o torcedor até a saída mais próxima e recomendou: vai, meu irmão, pega o caminho de casa que amanhã tem batente.  

Foi policial a vida toda. Viu crescer saudáveis os três filhos: João, que lhe seguiu os passos e hoje é coronel da PM carioca, Tereza, e Flávia. As principais lembranças que tenho remontam a uma visita que ele nos fez, acredito que no início da década de 1980. Parecia um padre. Melhor: um bispo, pelo corpo avantajado (não gordo, mas grande) e voz serena e pausada.

As outras reminiscências são mais ricas, já que mediadas pela memória de minha mãe. Explico: quando se vivencia um fato, colhemos nossas impressões, quando o fato nos é narrado, sobretudo de maneira apaixonada, a imaginação viaja livremente e constrói o personagem ou a história próxima do ideal. José Grande. Eram tantos filhos que há outro José, o Zeca. Por isso o Zé Grande.

José morreu ontem. Em casa, com o dever cumprido como na Consoada de Manuel Bandeira. Na verdade, José começou morrer quando Tereza – filha amada - o deixou e foi para o Céu, lugar para onde vão os nossos filhos que morrem antes da gente (até a mãe do Iscariotes acredita nisso). Morreu na Quaresma. Como num ato de contrição. Deixando cada coisa em seu lugar.

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Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Rainha do Brasil

O sábio João Silvestre, meu avô materno, dizia que “farinha é um dicumê abençoado: rende o pouco, esfria o quente e endurece o mole.” E é mesmo. Além de ser uma quase unanimidade entre os nordestinos, sempre foi, ao lado do consórcio gado/algodão, um produto que representava algum excedente nos “anos bons” (de inverno farto). Era o saco de farinha, de algodão, ou uma rês cevada que garantiam a compra de uma máquina de costura, de um “corte” para uma roupa nova (geralmente do mesmo pano para todos os meninos) ou, mais recentemente, de uma bicicleta ou de uma passagem para São Paulo.

A chef de cozinha Ana Luiza Trajano, paulista com ascendência mineira e cearense, vai mais longe e lembra que não é o arroz com feijão que une o Brasil: "a verdade no País inteiro é a mandioca". Câmara Cascudo chama a farinha  de “Rainha do Brasil – basalto fundamental na alimentação brasileira”. O naturalista austríaco Von Martius, que esteve em missão no Brasil de 1817 a 1822, escreveu que, “com um saquinho de farinha, o brasileiro vive oito dias e, nas matas e pântanos, cansaria o mais forte soldado nórdico e em guerrilha o venceria".

A farinhada é uma festa no sertão. Homens, mulheres e crianças trabalham na fabricação da farinha. Para todos há ocupação. Em certos pontos do País a farinhada é notável acontecimento; acorrem pessoas de diferentes sítios, há matança de rezes para alimentação dos que nela estão colaborando. Os lavradores vizinhos agem de modo a que não coincidam as épocas de farinhada, para poderem contar com o maior auxílio possível.

A negra Pastora raspava mandioca nas farinhadas de João Silvestre, meu avô. Também nas de outros pequenos (ou não tão pequenos) proprietários de terra no sopé da Chapada do Araripe. Vivia só. Os filhos cresceram e tresmalharam-se. Trazia sempre um pano amarrado na cabeça, cobrindo o pouco cabelo espicaçado. Tinha olhos opacos como os de um peixe passado. De cócoras para descascar mandioca, viam-se-lhe as canelas descarnadas e cinzentas.

Nas festas de farinhada Pastora bebericava umas e outras e ficava, como costuma dizer minha mãe, desbocada. Começava, então, dizer nomes feios e impropérios capazes de fazer corar um frade de pedra. Um dia acharam pastora boiando num açudeco onde costumava nadar ao amanhecer. As anáguas brancas lembravam um punhado de farinha a dar contornos à pele escura e fria. Extinguia-se ali a anônima Pastora. A preta desvalida que raspava mandioca nas farinhadas para sobreviver. 
Acho que Pastora foi a verdadeira Rainha do Brasil.