Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Feiras, ciganos e atavismos

Maria Silvestre, a “Maria Grande”, passou uma vida a aperrear meu avô João Silvestre (sim, isso mesmo, sou neto de João e Maria, ambos silvestres) para que ele desse fim a um enorme tamboril que existia na frente da casa velha. João nunca a atendeu. Então, ela resolveu cercar a morada com uma segura cerca de faxina, de varas bem juntinhas e entrelaçadas.

Era debaixo da imensa árvore que os ciganos montavam rancho. Dias antes da chegada dos nômades, começavam a sumir coisas e bichos: um pano do varal, uma galinha gorda (ou magra, tanto fazia), um bacurim, uma criação. Minha mãe dá conta do sumiço de uma perua choca, levada de cima do ninho!

Acampamento montado, nada mais levava sumiço. Dessa forma, nada se tinha a imputar contra nenhum membro do grupo. Mas para minha avó estava certo como a luz do dia: eram eles. Praguejava contra o acampamento no terreiro de casa mas, impotente, resignava-se a bater as portas e janelas e pegar-se com o rosário de contas.

Muitos anos depois, João e Maria já morando na cidade, fui incumbido de acompanhar minha avó na feira do Crato. Antes, porém, passamos no Banco do Brasil, onde receberia o aposento. Aliás, era a minha missão: prestar atenção para que ela, já muito idosa, não fosse tapeada por algum comerciante menos escrupuloso. Ou por um cigano, quem sabe?

No banco, Maria furou a fila do idoso. Afinal, Rosa, a senhora do caixa, era sua sobrinha. Entregou os papéis (naquele tempo não tinha a facilidade de cartão magnético, tudo era no caixa), e sentou-se tranquila à espera do seu dinheirinho. Depois era a feira.

Paramos numa banca de frutas. Eu limitando-me acompanhar e a observar. Enquanto escolhia bananas, um menino lhe pediu uma esmola. Sem titubear, Maria quebrou a penca em duas e atirou metade ao chão sem que o feirante visse. O menino apanhou saiu apressado. Estava feita a cortesia com o chapéu alheio.

Mais à frente: “Esse feijão tá muito caro!” – “É feijão novo, Vozinha. Veja...”, disse o feirante apertando a unha contra o grão, que estava molinho. “Isso é da chuva, Zé! Abaixe esse preço”. E eu do lado, a constatar: “Podem enganar outra, não essa dai”.

Diz o dicionário que “atavismo” é a “Reaparição, em um descendente, de certos caracteres vindos de um antepassado, e que não se haviam manifestado nas gerações intermediárias”.

Deve ser isso mesmo. Gosto muito de feira e não morro de amores por ciganos. Na verdade, acho interessante a cultura cigana. Também quero deixar claro que considero abominável sob todas as formas a perseguição a que foi submetido o povo cigano pelo nazismo. Só não gosto. Como não gosto da música Jorge Vercilo.

Pois bem. Voltemos ao atavismo. Estamos agora em 2012, na feira de Messejana. É para onde vou aos domingos cedinho sentir a cidade, seus odores (mesmo os ruins), seus sons (mesmo os ruins), seus sabores (mesmo a cachaça), seu povo. Se na feira tem quinquilharia importada, CDs e DVDs piratas e imagens em 3D do coração de Jesus, tem também garapa de cana, bolo manzape, galinha caipira, feijão novinho, e saudade de vó.

E tem também cigano. Pelo menos, nesse dia, tinha. Era uma passagem estreita entre as bancas e uma velha de vestido rodado e colorido, com um pano na cabeça, conversava baixinho no ouvido de um homem. No imprensado, tentando passar adiante com meus pacotes de compras, a ouvi dizer: “Bote o dinheiro na minha mão! Ele é seu, rapaz. Continua seu, mas bote na minha mão”. O homem com aparência simples estava seduzido, a mão entreaberta e algumas notas de R$ 50 à mostra.

No instante em que me desvencilhei do pequeno tumulto que me prendia, gritei a plenos pulmões: “Sai fora, abestado!” O homem 
saiu do aparente transe que o envolvia e voltou a apertar o seu dinheirinho na mão. Olhei para trás e vi a velha senhora a praguejar em minha direção.

Sai dali rindo e me lembrando de Maria Grande, que tinha medo, mas era astuta como um cigano.

Um comentário:

  1. Parece que vejo a tua cara rindo da gaiatice de espantar a possível vítima da cigana. Tão bom ler você, parece que o mundo é mais simples e as coisas boas existem, mesmo que não estejam todo tempo a se esfregar em nossas caras. Beijos. OBS - Eu também gosto de feira. A minha é a da Parangaba. Nunca mais fui lá, muito porque não tenho essa tua característica de madrugador. Só acordo tarde e, depois, tendo andado sem paciência para muita gente ao mesmo tempo agora.

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