Para além da religião formal católica e das festas populares profanas, o Cariri tem lá seus mistérios, suas transcendências. Seu sobrenatural. Meu pai, homem de fé e doutrina, é avesso a crendices. Rejeita tudo que não estiver em acordo com os evangelhos. Já minha mãe, em que pese não abandonar a reza formal, acredita em ‘forças inexplicáveis’.
Certa vez, minha irmã caçula, que é 12 anos mais nova do que eu, estava machucada. Em decorrência de uma queda, chorava muito, incomodada por dores no punho. Médico não dera jeito. Radiografia mostrou que não era ‘nada demais’. Mas, passado o efeito do analgésico, lá estava a criança a chorar de novo, com dores. Devia ter dois anos, no máximo.
Meio na surdina, já que meu pai não queria acordo como essas coisas, minha mãe me elege como cúmplice. Vamos juntos levar a pequena para uma rezadeira, que iria ‘costurar’ a contusão. Trata-se de ritual para curar machucados, torções, ‘carne triada’ e ‘junta desmentida’.
Somos recebidos no terreiro da casa simples, de taipa. A velha tem a cabeça coberta por um pano branco e um rosário de contas no pescoço. De posse de uma folha verde, agulha e linha grossa, começa o ritual. A senhora está sentada vis-à-vis com a minha mãe, que segura a filha ao colo. Eu observo de esguelha, meio sem entender, meio sem acreditar.
A velha diz e minha repete por três vezes enquanto costura na folha, como a tecer bordado mágico: “O que eu coso?” “Carne triada, osso, nervo torto, aqui mesmo eu coso...São Frutuoso, com os poderes de Deus as bênçãos da Virgem Maria.”
Em seguida benzedeira manda ofertar a São Frutuoso, Nossa Senhora e a Jesus Cristo, três Padres-Nosso, três Aves-Maria e três Glória ao Pai. Durante o ritual, a criança dormiu. E, garante a minha mãe, ao acordar, não reclamou mais do machucado.
Eu me lembrava claramente do episódio, mas não da reza em si. Em recente passagem pelo Cariri, uma tia me relembrou a reza. Dessa forma, a gente simples do Sertão vai cosendo histórias, sem deixar as tradições nem as crenças caírem no abandono. Com fé em São Frutuoso! Com os poderes de Deus, e com as bênçãos da Virgem Maria. Viva a cultura popular.
Acredito mesmo que existam mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha nossa filosofia, mas prefiro não bulir com essas coisas. Um abraço, Henrique!
ResponderExcluirEita Henrique. Esse texto foi feito de encomenda. Desde que me conheço por gente que minha avó, chamada Maria e hoje com 97 anos, reza em gente doente. Usa folha de pião roxo e, se não tiver, um mato verdinho serve para benzer enquanto ela recita baixinho as rezas que aprendeu ainda menina lá nas grotas de Itapipoca, onde nasceu. Já curou muito menino com diarréia, que vinha quase morto no braços da mãe com "quebranto"... Era o mal olhado. Também levantou muita "espinhela caída", inclusive a minha, e até hoje reza nos olhos para sarar os "dordói". Já viu como ficam as folhas no fim de uma reza? Bem murchinhas. E até para jogá-las dora existe um jeito certo.Uma vez me meti a besta e pedi para ela me fazer sua herdeira, que me ensinasse as rezas, e eu me comprometia a manter sua missão. "Minha fia, a gente é que tem quer chamada. Serve se oferecer não". Respondeu, e me deu um beijo na testa. Se creio em reza? Muito! Com fé em Deus e Nossa Sra.
ResponderExcluirIsso mesmo: as folhas murcham, absorvem o mal...Parabéns pela sábia vó Maria.
ResponderExcluirMuito do bom, esse teu blog. Cuma sô do sertão, neto de agricultor e nordestino, só tenho 'sastifação' em te seguir. A partir de hoje, 'Coisas do meu Sertão' é parte de mim... de minha leitura.
ResponderExcluirGrande prazer, seu Nonato. Já que veio, sente e espere o cafezinho. o Pão de milho já tá cheirando.
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