Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

À flor da pele

Vejo seu Espedito na capa de revista e fico orgulhoso. Não é a primeira vez que o vejo reconhecido e que me orgulho disso. Há alguns anos, esteve em São Paulo onde foi homenageado por estilista famoso. Um modelo bonito pra dedéu até desfilou com uma sela nas costas. Achei aquilo estranho, mas sei que em matéria de moda é tudo meio “Azul de Jezebel, no Céu de Calcutá”. Enfim.

Desde menino conheço e admiro o trabalho de seu Espedito e de outros mestres na arte de trabalhar e dar beleza ao couro. Birrão era um negro cego e muito pobre que gravitava em torno da “Casa do Vaqueiro”, no Centro do Crato. Seu Chicô, dono do estabelecimento tinha de um tudo. Dizem que até bainha pra foice.

Matuto sabia aonde encontrar o que precisava: Rua da Laranjeira (hoje Santos Dumont), próximo ao mercado velho, que já não existe mais. Birrão se gabava: “O véi aqui atrás dum couro. Me pediu pra escolher. Perguntei pra que era a peça... ele disse. Fui lá dentro e trouxe. Depois o cego sou eu!”
Na ponta dos dedos, tecia cordas de couro com maestria. E corrigia trabalhos malfeitos de outros artesãos.  Ao correr a peça entre os dedos, parava em determinado ponto: “Tá errado bem aqui”. E estava mesmo. Birrão via o que ninguém mais enxergava nem jamais exergará.

Viva seu Espedito, que com sua voz mansa me aponta, na porta de sua oficina: “Aquela casa bem ali atrás é de uma Silvestre, prima sua”. Fala de tia Rosa, a velha de olhos de anilados como de pavão. Fala de Luís, um primo distante. Do Sítio Grossos, onde nasceu minha avó...

Viva seu Espedito que, reconhecido, ganhou capas de revistas e páginas nos jornais. Contudo, viva ainda mais o genial Birrão, que era cego e morreu sem ser visto pela maioria de nós.

Um comentário:

  1. E viva o Henrique Silvestre que não deixa a memória cearense virar farinha mofada!

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