Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

sábado, 21 de maio de 2011

Última fulô do laço

Seu Chico Balbino me ensinou, há muito tempo, a diferença entre ‘rei’ e ‘reis’. Não se trata de plural de substantivo, advirto. É algo, digamos, mais profundo. Ou mais bonito. Vejamos: quando um matuto vai contar uma história de trancoso, uma fábula, em vez de da expressão “senhor rei”, ele emprega “senhor reis”. Isso mesmo, o monarca é chamado de “reis”, embora seja um só. Balbino explica, com sabedoria: “rei (relho) é de dar em animá”. Perfeito.
 
“Estou farto do lirismo comedido 
Do lirismo bem comportado 
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.”

Livro recentemente lançado pelo governo causa polêmica por aceitar a grafia de palavras em desacordo com a dita norma culta da Língua Portuguesa. Pai de três meninos em idade escolar, admito que não tenho elementos para opinar com segurança sobre o assunto. Mas, gostaria de contribuir para o debate de alguma forma. E, para isso, chamo à cena os meus matutos...

“Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.”

Disse em crônica anterior que o termo “alguidar” era comum entre membros da minha família. Mas não só esse: “ancho” é a cara da minha mãe ao ver alguém chegar satisfeito de uma empreitada. “Eita, fulano vem ali todo ancho”. Na língua portuguesa falada no Brasil, só conheço essa palavra empregada por Chico Buaque de Holanda. Uma única vez.

“Abaixo os puristas. 
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais 
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção 
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis“

Outros termos podem ser elencados. Muitos ficarão na gaveta empoeirada das reminiscências. J. de  Figueiredo Filho me socorre com “botador de sentido”. Embornal é o ‘bornal’ em que o caçador leva munição. Arupemba.... Há muitos. Meu avô não podia ouvir menino batendo boca que gritava de lá: “Não quero saber de prufia (porfia)” . Lindo!

“Estou farto do lirismo namorador 
Político 
Raquítico 
Sifilítico 
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.”

Minha avó, Maria Silvestre – a “Maria Grande“- era mestra em cunhar palavras, mesmo analfabeta. Um dia, ao conhecer uma bisneta nascida no Rio de Janeiro saiu-se com essa: “Como é seu nome?” E a menina: “Paloma”. Vovó: “Palooooooma? Eu não sei dizer esse nome, não. Vou te chamar é de Pelonha”.

“De resto não é lirismo 
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar mulheres, etc.”

Outra vez, de férias em casa de mamãe, eu já adulto, a vi procurar por algo na cozinha. Perguntei se podia ajudar. Ela: “Pode. Me mostre onde sua mãe guarda a nanuscada....” Não é preciso dizer que a comunicação não se estabeleceu. Disse que tava faltando ou inventei outra desculpa qualquer. Quando minha mãe chegou da rua soube que “nanuscada” é apenas noz moscada. Ok.

“Quero antes o lirismo dos loucos 
O lirismo dos bêbados 
O lirismo difícil e pungente dos bêbados 
O lirismo dos clowns de Shakespeare.”

Outros e outros exemplos de palavras (do português arcaico ou dessas adaptadas ao falar matuto) povoam a minha memória, inebriam a minha alma.

“- Não quero saber do lirismo que não é libertação.     

Os parágrafos entre aspas desse texto são a poesia “Libertinagem”, um libelo modernista de Manuel Bandeira.  Tenho a absoluta convicção de seu Chico Balbino nunca ouviu falar em Manuel Bandeira, em poesia modernista ou em clows de Shakespeare. Mas ele soube, como ninguém, ensinar a diferença entre a realeza e um chicote.

Hoje, lingüistas, políticos, jornalistas e outros especialistas “prufiam” sobre o livro do MEC. Sem paroxismos (licença, viu seu bandeira), prefiro meus velhos. Vou ficar com seu Chico Balbino e com seu Manuel  Bandeira, que me ensinaram uma lição real, poética e definitiva.



2 comentários:

  1. Eita Henrique, você rebolou no muturo (monturo) todo o vernáculo pedante dos linguistas

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  2. Excelente! Agora, sobre "o livro do MEC", ele não existe e o país inteiro, regido pela Rede Globo, Folha de São Paulo e Estadão, perdeu duas semanas em debates desinformados e preconceituosos. Sobre isso leia o artigo de Luis Nassif, "O escândalo do livro que não existia". Aqui:
    http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-escandalo-do-livro-que-nao-existia

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