Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

O menino e as macaúbas

Neto de próspero comerciante que ruiu com o ciclo do algodão, sempre tive uma relação muito difícil com essa atividade econômica. Na verdade, meu avô não transferiu nem para os filhos nem para mim, sua habilidade comercial.
Contudo, nos tempos bicudos da minha meninice, meu pai sempre me incentivou a entrar nesse ramo. Morávamos no sítio, e sempre havia excedente de um ou outro produto prontinho pra ser vendido.  Faltava o vendedor.
Não me recordo de quem partiu a idéia (embora ache que tenha sido corda do meu pai) de eu juntar um milheiro de macaúbas pra vendar na feira. Passei a me empenhar diariamente. Era muito ainda pequeno.
Passados alguns dias e com alguns espinhos nas mãos e nos pés (o espinho da macaubeira quebra a ponta dentro da carne. Passa uns 10 dias doendo até que inflama e sai), estava lá o monte de macaúba, reunido numa única saca que tinha quase a minha altura.
Meu pai tirou o banco do passageiro do fusca para levar a mercadoria. Saimos ainda  de madrugada em direção à feira, que ficava na margem esquerda do Canal do Rio Granjeiro (esse mesmo que a chuva arrebentou dias atrás).
Fiquei meio zonzo com o burburinho. Caminhões, carroças, sacos, chapeados ... Uma baiana gorda que usava uma bolsa à tiracolo por cima dos seios enormes e tinha um pano na cabeça era a manda-chuva. Ela era quem comprava e pagava tudo com dinheiro tirado da bolsa. Meus olhos brilhavam de ansiedade.
Tentei abordá-la por duas vezes, mas não recebi atenção (quem desdenha quer comprar, aprenderia depois).  Para conquistar a atenção dela eu apelei: chamei-a pegando na alça da bolsa onde ela levava todo o apurado. “–Cadê as macaúba (sic)?” “– Ali”, respondi apontado o saco. O sol começava a raiar nesse momento.
Ela então deu três passos, apanhou duas macaúbas do saco, bateu uma na outra e disse: “- Tão verde, presta não”(sic). Fiquei paralisado. Sem voz, sem argumento, sem ação.
Quando sai da letargia peguei o saco pelas “orelhas” e, com esforço descomunal, arrastei a mercadoria recusada até a margem do Canal. Sentado na mureta, com as pernas no batente que se forma do lado de dentro, comecei a pensar  no que fazer.
Enquanto destilava meu ódio avistei um rato dentro do canal, entre pedras e lixo. Joguei uma macaúba. Depois mais uma. Outra, mais outra....até que o sol, que já estava alto, fez escorrer a primeira gota de suor da minha fronte.
Nesse momento, peguei saco pelo meio e o inclinei sobre a mureta do canal. Mil macaúbas e a minha primeira experiência comercial estavam no fim.
Ao ver a cena, a mulher gorda ainda exclamou: “O menino jogou as macaúba fora!” (sic) Tive ainda atrevimento pra dizer: “Não eram minhas?”.
Dois quarteirões dali, meu pai aguardava no trabalho. Ao me ver chegar com saco vazio debaixo do braço perguntou, orgulhoso: “Apurou quanto?”. E eu: “Nada, joguei tudo no canal.”
Depois de uma gargalhada sem tamanho, ele me mandou merendar no café da dona Mundinha, que era no mercado ao lado. Morria ali, no nascedouro, um comerciante. Nascia um bruto.

2 comentários:

  1. Ah, Henrique, como eu queria poder dividr com você essa idéia desse doce bruto ter nascido ali. Só uma pessoa com a "brutice" já aninhada dentro do peito é que em tão tenra idade conseguiria fazer o que você fez, benhê! Não se subestime. E a resposta para a mulher: "Não eram minhas?". Ô criatura tão educadazinha.

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  2. Devo dizer que, por outras duas vezes, tentei o comércio. Conto detalhes depois. Bjo.

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