Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Eu, bicho do mato

Meu pai costuma dizer que “Silvestre é bicho do mato”. Isso para mexer com a família de minha mãe e, é claro, comigo. Confesso que, mesmo vivendo em grandes centros urbanos há mais de 25 anos, o mato não saiu de dentro de mim. Nem sai. Muito pequeno ainda fomos morar num sítio no sopé da Chapada do Araripe. Hoje, o bairro chique da cidade. Aquele era outro tempo.
A água encanada chegou depois. Éramos abastecidos por um chafariz que ficava próximo. A vegetação da Chapada abraçava a propriedade da família (hoje é um loteamento, com muitas mansões). Às 17 horas a floresta era noite. Não se entrava mais no mato. Perder-se era um risco. O Rio Jacó – um riacho afluente do Salgado, que ajuda o Jaguaribe a ser grande, é o rio da minha aldeia. Ele passa e eu confio.
Raposa, gato do mato, gavião, cobras, tejos, cassacos e uma sem-número de pássaros compunham a fauna. Uma rasga-mortalha tinha ninho na palmeira atrás da casa. Minha mãe tinha medo do agouro e palmeira foi ao chão. A ave foi fazer ninho bem longe. No meio do sítio, um enorme ipê amarelo ainda flora anunciando setembros. Tínhamos também a fortuna de possuir plantas que sempre considerei exóticas: um pé de araçá, outro de fruta-pão, café. Como cheira a flor branquinha do pé de café! E groselha (dessa eu trouxe uma muda para a Sapiranga!). Fruta comia-se do pé, fresquinha e sem veneno, fugindo dos marimbondos.
Tive, por isso, a alegria de uma infância pura, saudável: a merenda da escola era a fruta da época. Sucos de caju, manga, goiaba. Doces, ah os doces. O de groselha – não essa groselha européia, mas a groselha nordestina, da foto acima – sempre foi meu preferido.
Tudo dádiva da Floresta. Floresta Nacional do Araripe, que hoje completa 65 anos de criação. E que resiste, apesar de toda agressão humana.


(A foto no alto é do Cruzeiro no Mirante de Santana do Cariri, lugar incrível. Ao lado, o Soldadinho do Araripe outra dádiva da floresta).


4 comentários:

  1. Depoimento, memória, crônica, prosa, poesia - dimensões sertanejas expressas em remembranças, reminiscências, saudades. Excede em qualidade o texto do Silvestre, bicho do mato de corpo, alma e coração!

    ResponderExcluir
  2. Um dia eu ainda volto para tomar umas com os pés naquele rio. :)

    ResponderExcluir
  3. Lembro de ter visto lágrimas nos seus olhos naquele dia. Momento de pura epifania.

    ResponderExcluir
  4. Não tem nada que ache mais bonito do que alguém que se sabe possuidor de um rio da sua aldeia. E o percebe assim, com a poesia do Fernando Pessoa. Eu matuta da cidade nem sabia que existia groselha nesses nossos rincões. Traz para mim!

    ResponderExcluir