Alguma memória

Aqui vão alguns registros de memória do sertão que há dentro de mim.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Meias brancas


Os resultados do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica (Spaece) são comemorados por uns e rejeitados por outros. Na mão de alguns vira arma política. Há quem se justifique. Mas, o que há por trás dos números? No meu tempo, gente.

Estudei em escola pública nos primeiros anos da minha vida. Grupo Escolar Teodorico Telles de Quental. Depois de rápida passagem pelo Externato 5 de Julho, pertencente à Associação dos Empregados do Comércio, ingressei na escola particular. Com bolsa de estudos.

Nesse tempo, a região na qual a minha família se instalara deixava de ser um sítio isolado para, lentamente, se tornar (hoje) um dos bairros chiques da cidade. Vizinhos eram poucos. Como no dizer do poeta Manoel de Barros, passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas, como encantado. Mas, por obra da Providência Divina, um senhor de posses, pai de bela família formada por três meninos, mudou-se para sítio próximo. O mais velho tinha a minha idade.

Arranjaram uma bolsa de estudos e passei a frequentar colégio particular, junto com esse vizinho. Jogava bola no campo gramado da casa dele. Brincava de, vejam só, “Atari”, joguinho precursor de tudo quanto hoje há por aí. O Colégio era o Madre Ana Couto, pertencente á Diocese do Crato.

Ali conheci grandes professores. Agnelo Damasceno, Assis Brito, dona Aidê, Rogério, Padre Eugênio... Um dia comum de inverno fomos surpreendidos por uma preleção (Agnelo sempre fazia preleções antes de iniciar as aulas de Matemática... Falava de coisas atinentes à vida comum, aos acontecimentos cotidianos. Dava conselhos).

Nesse dia o professor havia encontrado uma estudante fardada zanzando na rua no horário de aula. Perguntou por que ela não estava em sala de aula. Perguntou o que se passava. A menina então explicou que, por ser tempo chuvoso, suas meias brancas não haviam secado e ela fora barrada na escola por estar em desconformidade com o uniforme.

Visivelmente emocionado, o mestre teceu elogios à menina que, em vez de desistir da aula, ia pra casa verificar se suas meias já haviam secado. Dessa forma poderia assistir às aulas após o recreio. E lastimou a decisão da direção da escola de barrar um aluno sem meias.

Por trás dos números Spaece há meias-verdades e meninos e meninas sem meias. Poucos, hoje, voltariam pra escola depois de barrados, como fez a garota do meu tempo.


E, desgraçadamente, há cada vez menos homens como Agnelo Damasceno.   

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